quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Requiem de Mozart


A certeza da morte e o entendimento da sua inevitabilidade só nos faz viver com intensidade, e a reflexão sobre esse tema, no campo da criação musical, nos deixou um legado todo especial de obras-primas, com algumas das mais belas melodias de todos os tempos.

No caso de Mozart, uma possível consciência do próprio fim conduziu à criação de cenários dramáticos de uma beleza indescritível. Se ele compôs o seu Requiem para o seu próprio funeral, ou se foi coagido a escrevê-la tendo sido assombrado por fantasmas de vida e de morte, isso não nos afeta no ato da execução da obra, mas, sim, a busca por uma recriação desse universo, pensado por ele, dentro da perspectiva do nosso tempo e de nossas experiências.

E por que os músicos têm tanto interesse nessa obra do compositor vienense? Porque é bela? Porque é popular? Porque emociona? Porque é um desafio de execução e interpretação? Porque é uma fonte inesgotável de aprendizados técnicos musicais? Porque nos convida a reflexões acerca da vida e da morte? Sem dúvida, a resposta é uma junção de todos esses elementos.

As interpretações do Requiem são muitas, e mesmo as desse maestro se modificam com o passar do tempo já que o percurso de vida modifica intensamente a maneira de pensar a música. A desse ano foge, eu diria, do princípio escatológico, pois foi precedida do estudo e execução de um outro Requiem, o de Brahms, uma composição que celebra a vida, mesmo que tendo como tema principal a morte.

Jamais penso nessa obra como uma missa de mortos, mas como uma celebração da plenitude da vida que conduz ao descanso. Esta celebração, ainda que intimista, eu tento reproduzir a partir da presença marcante do tímpano, o qual é, para mim, um solista dentro da grande obra. Quem não se emociona, sobretudo se estamos dentro de um templo, com as três primeiras batidas desse instrumento que antecedem a primeira entrada dos baixos, justamente com essa palavra mágica: Requiem (descanso)?

A consciência do pecado, tema ainda tão discutido no nosso tempo, não pode, nem deve, ser menosprezada nessa execução, pois somente com essa consciência se vislumbra o cenário operístico de pânico criado na “Sequência”, a partir do tão conhecido Dies Irae. Como não visualizar as chamas do inferno de Dante na apresentação das cordas e no timbre acentuados dos instrumentos de metal?

Mas nada tão tocante quanto, no meio de todo esse pavor, aquele canto do Recordare onde se pede ao Pai que não se esqueça de nós no momento do juízo final. E não percamos de vista a doçura mozartiana estabelecida desde o início pelo quarteto de madeiras. É certo que o pensamento original, com um corne de basseto (vale uma pesquisa para saber que instrumento é esse), é modificado timbristicamente pela clarineta moderna, mas, ainda assim, duvido que Mozart ficaria entristecido com a substituição pelos solos delicados desse instrumento.


E, finalizando, não é interessante como a perspectiva do fim do mundo ainda afeta emocionalmente o nosso tempo? Aprendi, há muito, que essa visão ainda deixa muitos de cabelos arrepiados, e, por isso, me afeta, acima de tudo, como intérprete. Mas que a celebração da vida, ainda que refletindo sobre a morte, se faça com a união estabelecida a cada ano por aqueles, músicos, cantores e público, que se juntam para essa execução do Requiem de Mozart.


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