Aproveitando minhas reflexões do post anterior, lembrei-me do bom, e difícil, trabalho que tive na preparação desta peça de Eric Whitacre. Uma obra que nos faz pensar no que significa sonhar em voar... não apenas no sentido literal, mas no musical.
Leonardo Dreams of His Flying Machine foi composta em
2001, sob texto de Charles Anthony Silvestri, inspirado nos cadernos de Leonardo
da Vinci. Desde o início, a peça se revela como um verdadeiro drama coral. Ela
coloca o maestro e o conjunto diante de uma narrativa intensa: a de um gênio
inquieto, atormentado pela imagem do voo, pela necessidade de vencer a
resistência do ar, pela urgência de imaginar asas onde até então havia apenas
matéria bruta.
Whitacre e Silvestri constroem uma linguagem musical que é quase pictórica, onde cada som parece pintar um quadro. É quase possível ver/ouvir o ateliê de Leonardo, repleto de pergaminhos, esboços e pombos soltos no amanhecer toscano e perceber o sussurro do céu chamando em italiano: “Leonardo, Leonardo, vieni à volare...”. Dá pra sentir, através da combinação rítmica e sonoro, a metáfora do engenho: a máquina de voo, as asas projetadas contra o ar e o fogo, o homem que tenta subir: carry a man up, up into the sun. Essas imagens não descrevem o voo: elas o fazem sentir.
Ao trabalharmos essa obra no contexto coral, percebemos o quanto a metáfora de Leonardo se concretiza. O coro torna-se a própria máquina de voo, um organismo coletivo que tenta vencer a resistência do ar (da combinação sonora), ou seja, superar cada obstáculo de afinação, de equilíbrio, de entrega, e transformar tudo isso em impulso criador. O gesto, nesse caso, é o ponto de ignição: convoca as asas, ajusta a máquina e prepara o salto; e o público é o céu, o espaço que acolhe o voo, onde o coro se eleva não apenas para performar, mas para transcender.
Para o cantor, essa peça pede mais do que técnica. Pede imaginação:
imaginar o ar, o movimento, a vertigem do voo. Para o regente, pede visão:
perceber o coro como uma engrenagem de sonho, onde cada voz é uma peça
essencial, a harmonia é o motor e o silêncio, o trampolim. E para todos nós,
intérpretes, ouvintes, formadores, ela lembra que o som mais verdadeiro é
aquele que se atreve a voar.
No fim, Leonardo Dreams of His Flying Machine não é
apenas sobre Leonardo, nem sobre o sonho da máquina. É sobre o desejo humano de
subir, de transformar o peso em leveza, o esforço em beleza, o som em voo, e de
descobrir, a cada nota, o ar que nos sustenta.
Vale ver/ouvir o próprio compositor regendo a sua obra:
Eric
Whitacre conducts "Leonardo Dreams of His Flying Machine"
O texto
I.
Leonardo sonha com sua máquina voadora...
Atormentado por visões de vôo e queda,
Mais maravilhoso e terrível cada um do que o anterior,
Mestre Leonardo imagina um motor
Para levar um homem ao sol ...
E enquanto ele está sonhando, os céus o chamam,
sussurrando suavemente seu canto de sereia:
"Leonardo. Leonardo, vieni á volare".
("Leonardo. Leonardo, venha voar".)
L'uomo colle sua congiegniate e grandi ale,
facciendo forza contro alla resistente aria.
(Um homem com asas grandes o suficiente e devidamente
conectadas
pode aprender a superar a resistência do ar.)
II.
Leonardo sonha com sua máquina voadora...
Enquanto as velas queimam baixo, ele anda de um lado para o
outro e escreve,
Liberando os pombos comprados um por um
No dourado nascer do sol da Toscana ...
E enquanto ele sonha, novamente o chamado,
O próprio ar dá voz:
"Leonardo. Leonardo, vieni á volare".
("Leonardo. Leonardo, venha voar".)
Vicina all'elemento del fuoco...
(Perto da esfera do fogo elemental...)
Riscando a pena no papel amassado,
Rete, canna, filo, carta.
(Rede, cana, linha, papel.)
Imagens de asa, armação e tecido bem presos.
... Sulla suprema ária sottile.
(... na atmosfera mais alta e rara.)
III.
Mestre Leonardo Da Vinci sonha com sua máquina voadora...
Enquanto a torre de vigia da meia-noite dobra,
Sobre telhado, rua e cúpula,
O triunfo de um ser humano ascendendo
No sonho de um homem mortal.
Leonardo se fortalece,
dá um último suspiro e pula...
"Leonardo, Vieni á Volare! Leonardo, Sognare!"
("Leonardo, venha voar! Leonardo, sonhe!")
Charles Anthony Silvestri, n.1965
Desafiadora, uma das obras mais difíceis que já cantei em coro, mas quando tudo toma forma, é um deleite fazer parte da grande máquina coral.
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