segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Quando a fome fala mais alto que a música contemporânea

Paris, fevereiro de 1958. O Madrigal Renascentista já tinha feito bonito no concerto do Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine: aplausos calorosos, sete “extras” pedidos pela plateia e a certeza de que a música mineira tinha atravessado o Atlântico com força. Entre os presentes, nomes de peso, inclusive um crítico brasileiro, Eurico Nogueira França, que profetizava sucesso internacional para o coro.

Mas um fato engraçado estava por vir, e aqui faço um parênteses para lembrar, ou informar, que mineiros, a exemplo dos italianos, têm um problema com os horários de alimentação. Pois, vamos lá: entre os ouvintes, ninguém menos que Pierre Boulez — maestro, compositor, pianista, escritor e já então uma das figuras mais respeitadas do mundo musical. Talvez impressionado com a apresentação, ele convidou o coro (ou alguns cantores) e o regente Isaac Karabtchevsky para uma visita à sua casa. Lá, ofereceu uma palestra sobre suas pesquisas de ponta em música eletroacústica.

Isaac não perdeu a chance: escreveu para o Diário de Minas destacando que Boulez estava “satisfeito por saber que já existia em Belo Horizonte pelo menos um grupo, pequeno, mas representativo, que compreendia e assimilava uma nova corrente na expressão musical.” Belo Horizonte, afinal, não ficava atrás de Paris.

Só que a história, contada de dentro, soa um pouco diferente. A ex-coralista Maria Amália Martins deixou registrada a cena:

“Houve um mal-entendido na conversação com o mestre francês, que entendeu ser o grupo um representante das universidades brasileiras. Ele então resolveu proferir a palestra para todos... em francês. Claro que esta foi pouco assimilada, pois todos os cantores estavam com fome e não entendiam praticamente nada do que Boulez dizia.”

E assim, o encontro histórico entre o Madrigal e o papa da vanguarda francesa ficou marcado não tanto pelo mergulho na música eletroacústica, mas pelo coro faminto tentando acompanhar, sem sucesso, uma aula que parecia em outro idioma (e era mesmo, em vários sentidos).

 


👉 No próximo post, sigo acompanhando a excursão de 1958 e como a passagem pela Bélgica e Holanda reforçou ainda mais esse papel diplomático.

 

 


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