domingo, 2 de novembro de 2025

O Requiem de Mozart e a celebração da vida

Hoje, Dia de Finados, mais uma vez o Requiem de Mozart ecoará na Catedral da Boa Viagem, em Belo Horizonte. É uma tradição que o Coro Madrigale mantém há muitos anos, uma celebração musical e espiritual que se repete sempre nessa data, com o mesmo sentimento de homenagem e lembrança.

Mesmo com o coro oficialmente em recesso, por causa do meu período de estudos na Europa, os cantores se reuniram espontaneamente para manter viva essa tradição. Sob a regência do maestro Weberson Almeida, eles estarão lá, com suas vozes unidas em oração e arte, fazendo da música um elo entre o tempo e a memória.

A certeza da morte e o entendimento de sua inevitabilidade só nos fazem viver com mais intensidade. E talvez por isso, no campo da criação musical, esse tema tenha deixado um legado tão especial de obras-primas, e algumas das mais belas melodias de todos os tempos nasceram justamente do confronto com a finitude.

No caso de Mozart, uma possível consciência do próprio fim conduziu à criação de cenários dramáticos de uma beleza indescritível. Se ele escreveu seu Requiem para o próprio funeral, ou se foi assombrado por fantasmas de vida e de morte, isso pouco importa no momento da execução. O que interessa é recriar, a cada nova interpretação, esse universo concebido por ele dentro da perspectiva do nosso tempo e das nossas próprias experiências.

E por que os músicos se interessam tanto por essa obra? Porque é bela? Porque emociona? Porque é popular? Porque representa um desafio técnico e interpretativo? Ou porque nos convida, inevitavelmente, a refletir sobre a vida e sobre a morte? A resposta, certamente, é a soma de todos esses elementos.

As interpretações do Requiem são muitas, e até as minhas próprias foram se transformando com o tempo, afinal, a vida muda a forma como pensamos a música. Jamais penso na obra de Mozart como uma missa de mortos, mas como uma celebração da plenitude da vida que conduz ao descanso. Essa celebração, ainda que íntima, se manifesta desde as três primeiras batidas do tímpano, um verdadeiro solista dentro da obra, que anunciam, com força e solenidade, a palavra mágica: Requiem, descanso.

A consciência do pecado, tema ainda tão atual, não deve ser ignorada. É ela que sustenta o cenário de pânico e redenção que Mozart criou na sequência do Dies Irae. As cordas e os metais, em seu vigor, parecem evocar as chamas do inferno de Dante, e, logo adiante, o Recordare surge como súplica e consolo: um pedido doce para que o Pai não se esqueça de nós no momento do juízo final. E como não se emocionar com a doçura do Lacrymosa, lágrimas em uma oração que embala e humaniza a dor.

É curioso perceber como, mesmo em tempos tão diferentes, a ideia do fim ainda nos afeta profundamente. O Requiem nos lembra disso, mas também nos ensina a celebrar a vida. Que essa celebração continue a acontecer, todos os anos, pela união daqueles (músicos, cantores e público) que se reúnem em torno dessa obra imortal. Porque, afinal, é cantando sobre a morte que reafirmamos a beleza de estarmos vivos.

  

Texto

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sábado, 1 de novembro de 2025

Marcos Leite - a voz que reinventou o canto coral brasileiro

E aproveitando o post anterior, me permitam falar um pouco sobre o compositor e arranjador Marcos Leite (que fez os arranjos de Pra machucar meu coração e Lata d'água). Vamos lá:

Na minha opinião, poucos músicos transformaram o panorama do canto coral no Brasil como Marcos Leite (1953–2002). Compositor, arranjador e maestro carioca, ele uniu de forma pioneira a linguagem popular e o pensamento coral contemporâneo, criando uma estética própria, brasileira, ousada e sensível. Fundador do grupo vocal Garganta Profunda, Marcos deu nova dimensão à ideia de “coro”: não apenas um conjunto de vozes afinadas, mas um corpo expressivo, que canta, interpreta, respira e se move com teatralidade.

Sua escrita sempre valorizou o ritmo da fala, a pulsação da música urbana, o humor e a delicadeza da canção brasileira. Ao mesmo tempo, trouxe sofisticação harmônica e refinamento técnico, resultado de quem conhecia profundamente a estrutura da música coral erudita, mas queria libertá-la do peso do formalismo.

Foi ele quem mostrou que a música de Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil ou Gonzaguinha podia soar em quatro, seis, oito vozes, mantendo a emoção e a identidade brasileira com harmonias criativas e uma liberdade que convidava o público a redescobrir o conhecido. 

Hoje, muito do que se faz em grupos vocais e coros populares no Brasil tem a marca de sua linguagem: a mistura de precisão e leveza, humor e lirismo, erudição e naturalidade. 

Mesmo após sua partida precoce, em 2002, sua música continua viva, seja nos arranjos que seguem sendo cantados por coros de todo o país, seja na memória daqueles que o conheceram ou aprenderam com ele.

Enfim, falar de Marcos Leite é falar de um ponto de virada no canto coral brasileiro, mas também de uma inspiração pessoal. Como regente e educador, sempre admirei nele a coragem de dissolver fronteiras, de mostrar que a música popular pode ser trabalhada com o mesmo rigor, beleza e profundidade que qualquer obra do repertório erudito.

Marcos Leite ensinou que o coro é mais do que técnica, é presença, alegria e partilha. E talvez o maior tributo que possamos prestar à sua memória seja continuar cantando o Brasil, como ele fez: com harmonia, com inteligência e com o coração.

 

🎧 Para ouvir: Hey Jude (John Lennon/Paul McCartney) - Grupo Vocal Garganta Profunda

 

 

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Grupo Vocal Garganta Profunda Marcos Leite - YouTube

 

 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O Centenário em ritmo brasileiro - a parte popular do concerto

Falei, no dia 09/10, do concerto comemorativo do Centenário da Escola de Música da UFMG. Depois da força ritual de The Making of the Drum, o concerto se abriu para outro tipo de celebração: a da música popular brasileira.

Era importante que, nesse marco de cem anos, a Escola também se reconhecesse em todas as suas linguagens, e a música popular é hoje uma parte essencial da sua identidade acadêmica e artística. Cantar esse repertório foi, portanto, uma forma de afirmar que o saber popular e o saber erudito convivem, dialogam e se completam dentro da mesma casa.

O repertório trouxe duas peças emblemáticas: Pra Machucar Meu Coração (Ary Barroso) e Lata D’água (Jerônimo Jardim / Luiz Antônio), ambas em arranjos corais que revelavam a força rítmica e a sutileza poética da canção brasileira.

Mais do que encerrar o programa, essas obras representaram um gesto simbólico: o Ars Nova, coral da UFMG, abria espaço para a canção que vem da rua, do morro, do corpo e da memória coletiva. E foi justamente a imagem da lata d’água que se tornou símbolo do concerto e da própria Escola.

Na canção, Maria sobe o morro equilibrando o peso e a coragem, como tantas mulheres brasileiras que sustentam o lar e a vida com dignidade. Essa imagem, tão simples e tão forte, também reflete o que é a nossa Escola de Música: uma instituição que há cem anos carrega, com esforço e honra, o peso da tradição e da esperança, mantendo viva a arte, a memória e o ensino musical em Minas Gerais.

A apresentação contou com participações especiais que deram ainda mais cor e vitalidade a essa parte do concerto:

Lucas Telles (violão), Fernando Rocha (percussão), Júlio Bastos (piano) e Davidson Inácio (baixo).

A presença deles trouxe o sabor da música feita em roda, com liberdade e escuta mútua, o encontro entre o rigor coral e a espontaneidade popular. Foi o encerramento perfeito para uma noite que celebrou não apenas a história da Escola, mas o seu presente.

Depois da percussão simbólica de Chilcott, veio a percussão real; depois do canto litúrgico, o canto da vida cotidiana. O Centenário terminou como devia: afirmando a pluralidade que faz da Escola de Música um espaço sustentado, todos os dias, por quem carrega, como Maria, a beleza e o peso de mantê-la viva.

https://youtu.be/9kaEEGlIarY?si=B10wS1XBv-wqZGYp&t=1452




quinta-feira, 30 de outubro de 2025

How Deep Is Your Love - a ternura em forma de canção

How Deep Is Your Love, composta pelos Bee Gees em 1977, é uma dessas músicas que falam sobre a delicadeza dos sentimentos. Suave, quase confessional, ela se tornou um dos grandes símbolos da música pop romântica do século XX. Para mim, tocá-la é sentir um arrepio desde as primeiras notas e observar o levantar das cabeças com um sorriso nos lábios ao reconhecer a melodia.

No concerto Madrigale canta o mundo, essa peça trouxe um momento de respiro, uma pausa entre a intensidade do rock do Queen e uma antecipação do que viria. O que viria?

O Madrigale a interpretou com arranjo coral de Christopher Hussey que explora justamente o que há de mais íntimo na melodia: o diálogo entre simplicidade e harmonia. Nesse arranjo, as vozes se entrelaçam com leveza, mantendo o tom original da canção, mas expandindo sua cor e profundidade através da textura coral.

A banda criou um acompanhamento delicado, em que o groove original dos Bee Gees se encontrava com o fraseado coral, dando à música uma nova respiração. O resultado foi uma sonoridade envolvente, de calor e proximidade: pop e coral convivendo sem fronteiras.

How Deep Is Your Love foi, nesse concerto, uma lembrança de que a música também pode ser um gesto de ternura, e que, no meio de tantas vozes, o amor continua sendo a mais bela harmonia.

🎧 Madrigale Pop Internacional – 03. How Deep Is Your Love

 

@jorgepereirafotografo

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Coros no mundo - VOCES8

Nesse blog, quero partilhar alguns coros que considero referenciais, grupos que me inspiram pela qualidade sonora, pela organização, pela escolha de repertórios e pela forma como unem tradição e inovação. A música coral contemporânea vive um momento riquíssimo, e conhecer esses conjuntos é também uma forma de ampliar o olhar sobre o que é possível fazer com vozes humanas em conjunto.

Começo esta série com um grupo que se tornou modelo de excelência e criatividade: o VOCES8.

O VOCES8 é um octeto vocal britânico fundado em 2005 por ex-coristas da Westminster Abbey. Desde então, tornou-se um dos conjuntos vocais mais admirados do mundo, reconhecido pela precisão técnica, homogeneidade de timbres e expressividade refinada. Seu repertório é enorme, indo da polifonia renascentista ao jazz, passando por arranjos de música popular e obras contemporâneas.

Mas talvez o que mais impressione no VOCES8 seja a clareza sonora e a fluidez da articulação, um som que respira, equilibra e comunica com naturalidade. Além da excelência artística, o grupo mantém a VOCES8 Foundation, instituição que promove projetos educativos e sociais voltados à música coral e à formação de jovens cantores, um verdadeiro modelo de como arte e educação podem caminhar juntas.

Para ouvirem o VOCES8, escolhi uma peça que adoro e que acho a interpretação deles sensacional: o Agnus Dei, de Samuel Barber. Essa obra é a versão coral do famoso Adagio for Strings, composta pelo próprio Barber em 1967 a partir de sua peça orquestral de 1938. 

Transformada em texto litúrgico, a música ganha uma dimensão espiritual impressionante: as mesmas linhas melódicas que antes expressavam dor e transcendência agora se tornam oração coletiva, feita de respiro, tensão e entrega. Na interpretação do VOCES8, o Agnus Dei alcança uma pureza rara, vozes que parecem suspensas no ar, equilibradas entre a dor e a serenidade. É uma escuta que emociona não apenas pela beleza, mas pela humanidade que nela habita.

🎧 VOCES8: Agnus Dei by Samuel Barber

  

Mulher com a boca aberta

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terça-feira, 28 de outubro de 2025

The Lord’s Prayer - uma oração em forma de música

Junho de 2020.

Ainda em isolamento, seguíamos cantando, cada um em sua casa, mas unidos pela fé, pela música e pela vontade de continuar. O tempo pedia silêncio, cuidado e introspecção. E foi nesse espírito que o Madrigale se reuniu virtualmente para cantar o Pai Nosso (The Lord’s Prayer), de Albert Hay Malotte. Ali, era mais que um vídeo, era uma prece. Uma tentativa de transformar distância em comunhão, solidão em som.

Ao piano, nosso querido Hely Drummond deu corpo e luz à oração que muitos conhecem, mas que naquele momento ganhou um novo sentido: pedir juntos, mesmo separados.

Em meio à incerteza, cantar o Pai Nosso foi também agradecer: por estarmos vivos, por ainda podermos nos escutar, por seguir acreditando na força da arte e da vida. Que essa oração em música continue ecoando em quem a ouve: não como lembrança de dor, mas como prova de que a esperança também pode ser polifônica.

🎧 The Lord's Prayer (Pai Nosso), Albert Malotte - Coro Madrigale

 



segunda-feira, 27 de outubro de 2025

The Seal Lullaby - Eric Withacre

The Seal Lullaby, de Eric Whitacre, é uma dessas  músicas que parecem feitas para acalmar o mundo. A peça nasceu de um poema de Rudyard Kipling,  escrito como canção de ninar para uma foca que embala o filhote nas ondas do mar.

Whitacre compôs essa obra a pedido do estúdio DreamWorks, que planejava um filme baseado no conto. O projeto não foi adiante, mas a música ficou, e acabou se tornando uma das peças corais mais conhecidas do compositor.

Tudo em The Seal Lullaby é simples e preciso. As vozes se movem como ondas curtas, próximas, sustentadas por um piano que respira junto com o coro. Não há drama nem tensão, apenas o equilíbrio de quem canta para acalmar. Talvez por isso essa música toque tanto, ela lembra o que há de mais essencial na arte coral: a união das vozes para criar paz.

Em tempos de ruído e dispersão, The Seal Lullaby é quase um antídoto: suave, breve e inesquecível.

🎧 https://youtu.be/TL7HkwnzENo?si=NMN3TtySvXte4QTR

 

The Seal Lullaby 

Poema de Rudyard Kipling (1865–1936)

Musicado por Eric Whitacre (2004)

 

Oh! hush thee, my baby, the night is behind us,

And black are the waters that sparkled so green.

The moon, o’er the combers, looks downward to find us,

At rest in the hollows that rustle between.

 

Where billow meets billow, then soft be thy pillow;

Ah, weary wee flipperling, curl at thy ease!

The storm shall not wake thee, nor shark overtake thee,

Asleep in the arms of the slow-swinging seas.

 

Tradução livre (Arnon Oliveira)

Silêncio, meu bebê — a noite ficou para trás,

E negras são as águas que antes brilhavam tão verdes.

A lua, sobre as ondas, desce o olhar para nos achar,

Em repouso nos vales que sussurram entre correntes.

 

Onde onda encontra onda, faz dela o teu travesseiro;

Ah, pequeno nadador cansado, enrosca-te em paz!

A tempestade não te despertará, nem o tubarão te alcançará,

Dormindo nos braços do mar que balança devagar.

💡 Este poema pertence à coletânea “The Jungle Book” (1894) e está em domínio público. A versão musical de Eric Whitacre (2004) transformou essa canção de ninar em uma das obras corais mais queridas do repertório contemporâneo, interpretada por coros em todo o mundo.

 


 

 

domingo, 26 de outubro de 2025

Madrigal Renascentista e a Fundação Gulbenkian — ecos de 1970

A Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, é um dos grandes centros culturais e científicos da Europa. Criada em 1956, ela nasceu do legado do filantropo armênio Calouste Gulbenkian, e desde então se tornou referência em promoção das artes, da ciência e da educação.

Seu edifício-sede é cercado por jardins, abriga museus, salas de concerto e uma das mais respeitadas bibliotecas do continente. Foi lá que estive recentemente, em busca de documentos que revelassem um capítulo pouco conhecido da história do Madrigal Renascentista: a sua passagem por Lisboa, em 1970.

A experiência de pesquisa na Gulbenkian é, por si só, memorável. Os arquivos são exemplarmente organizados, com fichas precisas, digitalização criteriosa, agendamento exclusivo e atendimento atencioso e silencioso. Tudo parece construído para acolher o pesquisador.

E então veio a surpresa: primeiro que, ao chegar lá, após fazer meu cadastro imediato, uma funcionária imediatamente me levou a um computador onde os arquivos que eu procurava já estavam separados à minha espera. Um dossiê com arquivos selecionados com cartas e telegramas trocados entre Lisboa e Belo Horizonte. Registros que revelam o caminho administrativo e diplomático que permitiu ao coro mineiro cantar na Fundação.

O mais interessante é que essa apresentação não fez parte das apresentações da turnê chanceladas pelo governo brasileiro. Foi, antes, um contrato direto com uma das instituições musicais mais prestigiadas do mundo, reconhecendo o Madrigal como um grupo de mérito próprio, respeitado e convidado pela sua qualidade artística.

Esses documentos atravessaram o Atlântico há mais de meio século, e hoje voltam a respirar na tentativa de compreender a amplitude dessa história. Cada telegrama, cada assinatura, é uma prova de que a música, mesmo quando nasce em um canto distante, encontra sempre o seu caminho até o centro das coisas.



 


sábado, 25 de outubro de 2025

Bohemian Rhapsody — quando o coral encontra o épico

Há músicas que parecem ter sido escritas para o impossível, e Bohemian Rhapsody, do Queen, é uma delas. Lançada em 1975, a obra de Freddie Mercury não é apenas uma canção, mas uma pequena ópera em si: seis minutos de puro espanto musical, onde o rock, a balada e o drama se entrelaçam em um arco teatral de intensidade e invenção.

Transpor tudo isso para o universo coral é um desafio. Mas há arranjadores que sabem transformar o impossível em beleza, e Mark Brymer é um deles. Seu arranjo coral de Bohemian Rhapsody é uma verdadeira arquitetura de vozes: respeita o espírito da obra original, mantendo a simplicidade do arranjo, mas oferece ao coro a chance de viver o espetáculo de dentro.

Brymer não tenta imitar a banda, ele a traduz. Faz com que o coral respire junto com o piano, recrie a textura das guitarras, desenhe os contrastes entre o lirismo da introdução e a força explosiva do final. Cada voz encontra seu papel na dramaturgia musical: sopranos que cortam o ar como luz, baixos que sustentam a densidade da terra, contraltos e tenores costurando o meio com energia e precisão.

E, para dar corpo a essa sonoridade, o Madrigale contou com uma banda excepcional:

Elias Santos (violão e guitarra)

Hugo Silva (baixo)

Júlio Bastos (piano)

Phil Rezende (teclados)

Gui Stephan (bateria).

Foi com eles que o coro encontrou o equilíbrio perfeito entre a força do rock e a harmonia coral, uma fusão que fez vibrar cada nota como se o palco respirasse.

No concerto Madrigale canta o mundo, o público reconheceu a melodia, mas ouviu algo novo: um Queen multiplicado em muitas almas, onde o rock se fez polifonia e o épico se tornou humano. Naquele momento, o teatro inteiro parecia respirar junto. Foi arrepiante!!!

E talvez seja essa a grande força da música coral, transformar o que era individual em comunhão sonora, fazer do espetáculo uma experiência de presença.

 

🎧 Para quem quiser conhecer o arranjo:

Madrigale Pop Internacional – 02. Bohemian Rhapsody

 

@jorgepereirafotografo

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Madrigale canta o mundo — um concerto de afetos e memórias

Há canções que atravessam o tempo. Elas nos esperam na curva das lembranças, guardam amores, viagens, danças, e voltam sempre que a vida pede um pouco de leveza... ou de agitação. Essas canções nos formaram, e é por isso que, quando as cantamos, algo nelas se transforma: o íntimo se torna coletivo, o afeto vira comunhão.

No concerto Madrigale canta o mundo (Madrigale Internacional), realizado no Teatro SESIMINAS, no dia 13 de junho de 2025, o coro se propôs a revisitar algumas dessas canções universais, não para repeti-las, mas para recriá-las em harmonia, entre a sofisticação coral e a emoção popular.

O programa trouxe clássicos como Bohemian Rhapsody (Queen), True Colors (Cyndi Lauper), How Deep Is Your Love (Bee Gees), Take On Me (a-ha) e All of Me (John Legend), canções que fizeram parte de muitas vidas, agora repensadas sob a luz coral, ganhando corpo e cor em vozes que se entrelaçam, através de arranjos escolhidos para mostrar o que um coro pode fazer com qualquer linguagem.

O Madrigale propôs mais do que um tributo à música pop: ofereceu uma travessia. Cada arranjo foi um gesto de escuta, escuta do tempo, do outro, de si.

Entre vozes que se fundiam e se separavam, o concerto celebrou a beleza do reencontro com o que permanece vivo dentro de nós. Foi uma noite para cantar com o coração, dançar com a lembrança e silenciar com a beleza. Um concerto de afetos, de presenças e de memória. O Madrigale cantou. O mundo escutou. E, por alguns instantes, tudo se curou através da música.

Para além disso, foi um concerto especialmente significativo, porque marcou uma despedida temporária dos palcos, um momento de pausa antes de novas travessias. Um adeus breve, cantado em muitas línguas, mas dito em uma só voz: a da emoção que permanece.

E assim começamos o concerto:

Madrigale Pop Internacional – 01. We Will Rock You


Aos poucos, nos próximos dias, vou falando sobre a produção e as peças cantadas.






 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O Regente Coral

Falar de coro é, inevitavelmente, falar do seu regente. Não apenas porque ele conduz, mas porque o coro é, em grande parte, o reflexo da escuta, da sensibilidade e da visão de quem o dirige.

O regente coral é mais do que um técnico do gesto, é um mediador entre a partitura e o som vivo, entre o compositor e as vozes que dão corpo à obra. Sua função é articular o invisível: transformar intenção em som, emoção em forma, coletivo em unidade.

Mas há algo que torna o coro um instrumento único entre todos: a palavra. Enquanto uma orquestra trabalha com o som abstrato, o coro lida com o verbo, com a linguagem. Cada frase, cada sílaba tem sentido, ritmo, textura e intenção. Cantar em coro é dar corpo à palavra; é fazê-la ressoar não apenas com a voz, mas com o pensamento e o sentimento de quem canta. Por isso, o regente coral precisa ser também um leitor atento, um intérprete do texto. Ele traduz em som o que as palavras contêm de silêncio, de respiração, de emoção humana.

A regência, portanto, começa muito antes do gesto. Está na escolha do repertório, na compreensão das vozes, no entendimento de que o coro é um organismo vivo em que som e sentido se fundem. Um bom regente sabe que cada voz traz uma história, um limite e uma verdade, e que o papel da arte é somar essas singularidades, não apagá-las. Há, claro, o aspecto técnico: o gesto que comunica o pulso, o olhar que orienta a entrada, o desenho das dinâmicas no ar. Mas há também o que não se ensina, a escuta silenciosa.

O trabalho coral é, antes de tudo, um exercício de convivência e de linguagem. Por isso, o maestro de coro precisa ser, simultaneamente, músico, pedagogo, psicólogo, arquiteto e poeta. Ele constrói o som, mas também o espaço simbólico onde as vozes e as palavras se encontram. E quando o coro canta, já não é o maestro quem rege: é o próprio verbo que se faz som, guiado pela energia que ele ajudou a criar.

Regentes que apenas comandam fazem o coro obedecer; regentes que escutam fazem o coro respirar.




quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Especificidade dos Coros

Pouco se pensa que um coro, assim como uma orquestra, é um organismo construído com propósito. Cada coro nasce a partir de uma intenção: institucional, comunitária, artística ou litúrgica; e essa origem determina sua forma, sua sonoridade e seu modo de existir.

Coros especializados em repertório operístico, por exemplo, diferem profundamente de outros. São formados, em geral, por cantores profissionais, com sólida formação técnica e cênica. Cantam atuando, o que exige domínio de palco, projeção de voz e uma uniformidade sonora capaz de preencher grandes teatros sem perder clareza. Os integrantes podem atuar como solistas ou coadjuvantes dentro da obra sendo executada e, via de regra, trata-se de conjuntos com um número elevado de cantores (de 60 a 100 pessoas).

Já os coros sacros cumprem uma função distinta. São coros de serviço, voltados à liturgia, ao acompanhamento dos ritos religiosos. Ali, a música não é o fim, mas o meio: ela serve ao texto e ao gesto do culto. Por isso, as melodias são simples, diretas, e muitas vezes entoadas em uníssono. Quase nunca os cantores de coros são profissionais, sendo que sua formação musical pode muitas vezes acontecer ao longo de sua experiência no próprio coro, o qual normalmente tem mais flexibilidade em relação aos integrantes que nem sempre são fixos ou regulares.

Os coros de câmara, talvez o formato mais difundido no Brasil, ocupam outro espaço. São conjuntos menores, entre 15 e 40 cantores, dedicados à música coral em seu sentido pleno, isto é, àquilo que foi composto especialmente para o coro como instrumento. Cantam a várias vozes, explorando timbres, texturas e possibilidades do som humano: da respiração ao gesto, da palavra ao silêncio. Frequentemente cantam a cappella, sem acompanhamento instrumental, e seu repertório é livre, podendo ir da Renascença ao contemporâneo, do sagrado ao popular. A qualidade do conjunto, bem como a elaboração do repertório desenvolvido por ele, está diretamente associada à qualidade dos cantores que compõem o coro, sendo tanto melhor quanto mais cantores com formação musical e de canto o compuserem.

 

Continuo ainda...



 


terça-feira, 21 de outubro de 2025

Falando sobre Canto Coral

Quero começar uma breve série de textos sobre canto coral, um tema que merece ser revisitado.

Nos últimos tempos, a palavra “coral” passou a designar qualquer grupo de pessoas que canta junto, e isso acabou diluindo um conceito que carrega história, técnica e propósito artístico. É importante recuperar o sentido das coisas.

Há uma diferença essencial entre um orfeão e um coro: o orfeão é um agrupamento mais amplo, coletivo, muitas vezes formado por pessoas sem formação musical, reunidas pelo prazer de cantar e pelo valor social dessa experiência.

O coro, por sua vez, pressupõe um trabalho técnico e interpretativo mais apurado, vozes equilibradas, repertório pensado, ensaio dirigido por um regente com intenção estética. O professor Ricardo Goldemberg* resume bem:

“O orfeão tem características próprias que o distinguem do canto coral dos conjuntos eruditos. Trata-se de uma prática da coletividade em que se organizam conjuntos heterogêneos de vozes e tamanho variável, sem exigência de conhecimento musical ou treinamento vocal.”

Em contrapartida, o canto coral busca organização, precisão e expressão. Não é apenas um conjunto de pessoas que canta; é um organismo sonoro que pensa, respira e sente junto. E aqui não interessa se são duas, três, quatro ou mais vozes.

Mas o canto coral não é privilégio da técnica, é também educação, convivência e escuta. Cantar em grupo, mesmo de forma simples, é um ato de encontro. E talvez, no fim das contas, seja isso o que nos mantém humanos: a capacidade de escutar o outro para fazer soar o mesmo som.

Nos próximos posts, sigo nessa conversa.

 

* GOLDEMBERG, Ricardo. Educação musical: a experiência do canto orfeônico no Brasil. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8644264/11690>. Acessado em: 17/10/2025.

 




segunda-feira, 20 de outubro de 2025

City Called Heaven — vozes que resistem ao esquecimento

Maio de 2020. O mundo inteiro em suspensão. As cidades vazias, o tempo dilatado, a respiração contida... A arte, mais uma vez,  encontrava um modo de continuar. Foi nesse cenário que nasceu mais um dos nossos coros virtuais, com o Madrigale espalhado por telas e distâncias, mas unido pelo som e pelo desejo de permanecer.

Escolhemos City Called Heaven, espiritual afro-americano que fala de cansaço, fé e travessia. Na voz profunda de Fernanda Valadares, a canção ganhou uma dimensão simbólica: era prece e era desabafo, era busca por um céu possível quando tudo parecia tão baixo.

Mas havia algo mais: o vídeo, com suas imagens fragmentadas, os rostos dissolvidos, as sobreposições e ausências, transformou-se em metáfora daquele tempo. As vozes se reconstruíam em meio à desconstrução, revelando a dor e a beleza de existir num mundo interrompido.

O tempo passou, e o mundo tentou seguir adiante. Mas há algo inquietante na forma como a pandemia vem sendo esquecida, como se quiséssemos apagar o medo, a solidão e as perdas que nos atravessaram. Eu penso o contrário: não devemos esquecer. Porque naquele vazio, nas casas silenciosas, nas vozes gravadas com fones simples e microfones precários, aprendemos o que é comunidade, o que é fragilidade, o que é amor à arte e à vida.

City Called Heaven é, para mim, uma das lembranças mais sinceras daquele período. Não é apenas um registro musical: é um testemunho. É o som de um tempo em que a música foi abrigo, em que cantar era resistir. 

Esse Spiritual nasceu da tradição afro-americana, da voz coletiva que atravessou séculos de dor e esperança. É uma canção de exílio e fé, um lamento que busca consolo num “céu chamado paraíso”; não como fuga, mas como resistência. Ao cantá-la naquele maio de 2020, o Madrigale se uniu, sem saber, a essa linhagem de vozes que nunca se calaram. Porque cantar, mesmo quando o mundo desaba, é afirmar que a vida ainda tem som.

 

🎧 Assista ao vídeo no YouTube

 

 

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domingo, 19 de outubro de 2025

Only in Sleep — o sonho que canta

Há músicas que parecem existir num espaço entre o tempo e a memória. Only in Sleep, do compositor Ēriks Ešenvalds, é uma delas.

Escrita em 2010 para o University of Louisville Collegiate Chorale e o Cardinal Singers, a obra parte de um poema de Sara Teasdale, poetisa americana do início do século XX, que fala da infância revivida nos sonhos. 

É uma canção de lembrança, mas também de reencontro, um olhar para o passado com a ternura de quem o revive apenas quando adormece.

Ešenvalds traduz essa nostalgia com uma música de frases regulares e harmonias suaves, mas ricas em cor e detalhe. Cada acorde parece respirar, e cada transição em vocalises cria pequenas ondas de emoção, como se a música fosse feita de névoa e memória. Nada é dramático, nada é imposto. A força da peça está na delicadeza, naquilo que é quase silêncio.

A soprano solista, que abre a obra, volta no final. Sua linha melódica é como um fio de luz: flutua sobre o coro, ornamenta-se em arabescos, e se dissolve lentamente até desaparecer. Entre a primeira e a última nota, o ouvinte é levado a um espaço interior, onde a lembrança e o sonho se confundem.

Musicalmente, Only in Sleep é um exercício de equilíbrio: entre simplicidade e refinamento, entre estrutura e lirismo. O coro sustenta a solista com acordes que oscilam como um coração tranquilo, um pulso contínuo de serenidade. Ešenvalds domina como poucos a arte da harmonia coral contemporânea: cada voz tem um papel preciso, e o resultado é de uma beleza quase translúcida.

Mais do que uma obra sobre o sono, Only in Sleep fala do poder da memória e da música de despertar o que dorme dentro de nós, porque há lembranças que só cantam quando fechamos os olhos.

Only in Sleep — texto original (Sara Teasdale)

Only in sleep I see their faces,
Children I played with when I was a child,
Louise comes back with her brown hair braided,
Annie with ringlets warm and wild.

Only in sleep Time is forgotten—
What may have come to them, who can know?
Yet we played last night as long ago,
And the doll-house stood at the turn of the stair.

The years had not sharpened their smooth round faces,
I met their eyes and found them mild—
Do they, too, dream of me, I wonder,
And for them am I too a child?


Tradução poética (Arnon Oliveira)

Só no sono eu vejo seus rostos,
As crianças com quem brinquei quando era criança.
Louise retorna com suas tranças castanhas,
Annie, com os cachos soltos e quentes.

Só no sono o tempo é esquecido —
O que foi delas, quem pode saber?
Mas ontem à noite brincamos como antes,
E a casa de bonecas estava no alto da escada.

Os anos não afiaram seus rostos redondos,
Encontrei seus olhos e os vi serenos —
Será que elas também sonham comigo, pergunto,
E para elas, serei eu também uma criança?

🎧 Sugestão de audição: Only in Sleep — Ēriks Ešenvalds, com o Choir of Trinity College, Cambridge, regência de Stephen Layton.

Assista no YouTube

 

 

Grupo de pessoas lado a lado

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Sobre o compositor: 

Ēriks Ešenvalds é um dos nomes mais expressivos da nova geração de compositores corais europeus. Nascido na Letônia em 1977, formou-se na Academia de Música da Letônia e tornou-se conhecido por uma escrita profundamente lírica, de harmonias transparentes e espiritualidade silenciosa. Sua música combina técnica apurada com emoção direta: o sagrado e o humano sempre em diálogo. Obras como O Salutaris Hostia, Stars e Only in Sleep revelam um compositor que entende o coro como espaço de ressonância interior, onde som e luz parecem falar a mesma língua.

sábado, 18 de outubro de 2025

Onde Deus possa me ouvir (2) — Madrigale ao vivo

Me permitam uma sequência do post do dia 16, anteontem... aqui, o Madrigale cantando a mesma peça em uma apresentação no Programa Viva Música, no auditório da Escola de Música da UFMG. E ali está ele: Hely... 

Um post curto e cheio de emoção do lado de cá...

"Onde Deus possa me ouvir" - Vander Lee




sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Hely Drummond — o som da delicadeza

Há pessoas que não passam pela vida: elas a atravessam deixando música. Hely Drummond foi assim. Pianista de alma antiga e ouvido moderno, desses que não precisam de partitura para entender o coração de uma canção.

Conheci Hely no tempo em que o Madrigale ainda buscava novas formas de dizer o que sentia através da música. Ele chegou com seu piano, o humor mineiro e aquela sabedoria silenciosa de quem já viu o palco, a noite, o rádio e o afeto passarem muitas vezes pela mesma tecla. Com ele nasceu o espetáculo HelyElas... e nasceu também uma amizade.

Foram noites de ensaio e riso, canções que iam de Tom Jobim a Johnny Alf, arranjos que traziam a sofisticação de quem sabia que a beleza está no detalhe. Hely era o tipo de músico que acompanhava cantores como quem conversa: escutando, respirando junto, deixando espaço para o outro existir. Seus arranjos tinham algo de transparente. Eram como janelas abertas: o ouvinte via a harmonia, sentia o balanço, mas o que realmente tocava vinha de dentro. Sabiá, O Morro Não Tem Vez, Ilusão à Toa, Cantores do Rádio, Chovendo na Roseira, todas essas músicas, depois que passaram pelas mãos de Hely, nunca mais soaram iguais.

Ele tocava como quem acaricia o tempo. Era generoso, firme e, ao mesmo tempo, brincalhão. Tinha esse dom raro de misturar técnica e ternura. Quando acompanhava o Madrigale, parecia regê-lo com os dedos: o som do piano era extensão da respiração do coro.

Nos bastidores, vinha o humor tranquilo, a história contada em voz baixa, a ironia leve de quem sabia que a vida, como a música, é feita de pausas e surpresas.

Hely partiu em 2022, mas ficou em tudo o que criamos juntos. Ficou nos arranjos que ainda tocamos, nas vozes que ele embalou, nas amizades que cultivou com paciência de artista e de amigo. Ficou, sobretudo, em cada acorde que aprendeu a dizer o indizível.

Hely Drummond não foi apenas um músico do Madrigale. Foi parte do nosso som. E, se é verdade que o som morre quando se cala, então ele ainda não morreu, porque sua música continua ecoando em nós, como um gesto de afeto e de eternidade.

Sua benção, Seu Hely.

🎧 (818) Carinhoso - Coro Madrigale (Hely Drummond) - YouTube




quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Onde Deus possa me ouvir — Madrigale virtual, abril de 2020

Enquanto a quarentena seguia seu curso e o mundo inteiro tentava aprender a lidar com o silêncio das ruas, nós, do Madrigale, seguíamos fazendo o que sempre nos manteve unidos: música. Mesmo separados fisicamente, continuávamos próximos naquilo que importa, o som, o afeto e a vontade de permanecer juntos.

Em abril de 2020, quando o tempo parecia suspenso, lançamos mais um coro virtual, com um arranjo que nos era particularmente querido: Onde Deus Possa me Ouvir, de Vander Lee, com o delicado e sofisticado arranjo de Hely Drummond, escrito originalmente para o concerto HelyElas.

Aqui, são só as vozes femininas que se entrelaçam, cada uma gravada em sua casa, em meio ao cotidiano da pandemia. E ao piano, ele, o Seu Hely Drummond, cuja sensibilidade continua sendo um exemplo do quanto é possível dizer com poucas notas.

A música, mais uma vez, fez o impossível: uniu o que estava disperso, transformou distância em presença e esperança em som.

Apreciem sem moderação. E, se puderem, compartilhem com quem anda precisando ouvir algo bonito, porque é assim que seguimos, um pouco mais fortes, um pouco mais juntos.

 

🎧 HELYELAS - Onde Deus Possa me Ouvir, Vander Lee - Coro Madrigale






 


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

The Making of the Drum — 5. The Gong-Gong

Depois de nascer da pele, da madeira, dos bastões e das cabaças, o tambor está completo. Em The Gong-Gong, Bob Chilcott encerra a obra com uma celebração: o tambor em sua forma total, agora vivo e sagrado.

O texto  é breve, mas poderoso. Ele começa com uma imagem arrebatadora: “God is dumb until the drum speaks.” Deus é mudo até que o tambor fale. Aqui, o tambor é mais do que instrumento, é voz da criação. Tudo o que antes foi moldado, o corpo, o som, o gesto e a alegria, converge neste momento final. O tambor se torna símbolo de comunicação entre o humano e o divino, e o Gong-Gong, feito de ferro, guia essa fala sagrada, como se abrisse caminho para a voz de Deus.

O poema invoca Odomankoma, a força criadora na tradição Akan, símbolo da criatividade infinita e do poder de gerar vida. Ao citar esse nome, Brathwaite reconhece que o tambor é o meio pelo qual o sagrado se manifesta no mundo: a batida humana que desperta o divino. O som do tambor, então, não pertence mais à terra, ele atravessa o limite do humano e toca o eterno.

Chilcott traduz isso em música com uma energia vibrante e luminosa. A escrita coral é ampla, pulsante, feita de contrastes entre poder e silêncio. Há momentos de chamada e resposta, de vozes que se alternam como se fossem a comunidade dialogando com o espírito. As texturas rítmicas são densas e resplandecentes, e a percussão assume um papel quase litúrgico. Em The Gong-Gong, o tambor fala, e quando ele fala, Deus responde.

A obra termina não com um ponto final, mas com uma reverberação. A música se expande para além do palco e do tempo, como se dissesse que o som da criação nunca cessa, apenas muda de forma. Aqui, um círculo sagrado se fecha. O tambor, que começou como matéria, torna-se agora espírito e palavra. Tudo vibra junto: o humano, o divino, o som e o silêncio. A obra termina com uma afirmação simples e profunda:

a música é a voz do criador que habita em nós.


Vou sugerir a audição da bela interpretação Taipei Chamber Singers, sob a regência de Yun-Hung Chen. Esta primeira peça vai do minuto 9:40 até o fim. E que tal ouvirem, em algum momento, a peça completa? 

🎧 https://youtu.be/wfFiHKXQ1dg?si=WTtlG5k0I0_bl2S8&t=580


The Gong-Gong

(Edward Kamau Brathwaite / Bob Chilcott)

God is dumb

until the drum

speaks.

The drum

is dumb

until the gong-gong leads

it.

Man made,

the gong-gong’s iron eyes

of music

walk us through the humble

dead to meet

the dumb

blind drum

where Odomankoma speaks.

 

Tradução livre:

Deus é mudo

até que o tambor

fale.

O tambor

é mudo

até que o gong-gong o guie.

Feito pelo homem,

os olhos de ferro

musicais do gong-gong

nos conduzem pelos humildes

mortos até encontrar

o tambor mudo

e cego,

onde Odomankoma fala.

 


 

Grupo de pessoas com terno e gravata

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terça-feira, 14 de outubro de 2025

The Making of the drums - 4. Gourds and Rattles (Cabaças e chocalhos)

Depois da pele, da madeira e dos bastões, chega o tempo da celebração. Em Gourds and Rattles, Bob Chilcott amplia o mundo sonoro da obra: agora, é a própria floresta que ressoa. As cabaças e os chocalhos entram em cena, instrumentos simples e ancestrais que carregam o som do tempo e da terra.

O poema de Kamau Brathwaite descreve a árvore de calabaça e a transformação de seus frutos verdes em instrumentos musicais. As folhas “não se chocam”, mas os frutos queimam “como cobre na luz” e racham para libertar as sementes que chacoalham. É uma imagem de renovação e movimento, a natureza se abrindo em som. O texto mistura serenidade e humor: as cabaças “fazem e zombam da nossa música”, como se lembrassem que a arte é também um jogo, um espelho da própria vida. A música, nesse ponto, deixa de ser apenas ritual e se torna festa.

Chilcott traduz isso com uma escrita coral cheia de energia e brilho. Há leveza no ritmo, estalos, sussurros, chocalhos vocais. O coro cria uma textura viva, feita de pequenas pulsações e respirações. É como se cada cantor segurasse uma cabaça invisível e a fizesse dançar no ar. Os ostinatos rítmicos mantêm o pulso contínuo, enquanto as harmonias saltam como sementes dentro do fruto. É um movimento que celebra a alegria da criação e a engenhosidade humana de transformar o que a natureza oferece em som e dança.

Aqui, o tambor já não é apenas instrumento, é comunidade. A música que começou no sacrifício termina em riso, corpo e movimento. Gourds and Rattles é a imagem da música em plenitude, o som que se liberta, o corpo que dança. Depois do silêncio e da reverência, vem o riso, a invenção, a vida. A obra termina como começou: com a natureza falando. Mas agora, ela fala cantando, e a canção é de todos.

Vou sugerir a audição da bela interpretação Taipei Chamber Singers, sob a regência de Yun-Hung Chen. Esta primeira peça vai do minuto 7:55 até 9:40. E amanhã eu falo sobre a quinta e última parte: The Gong-Gong.

🎧 https://youtu.be/wfFiHKXQ1dg?si=9Ko_lD_FSfIYcvdy&t=475


Gourds and Rattles

(Edward Kamau Brathwaite)

Calabash trees'

leaves

do not clash;

bear a green

Gourd, burn

copper in the

light, crack

open seeds

that rattle.

Blind underground the rat’s

dark saw-teeth bleed

the wet root, snap

its slow long drag of time,

its grit, its flavour; turn

the ripe leaves sour. Clash

rattle, sing gourd; never leave

time’s dancers weary like this tree

that makes and mocks our music.

 

Tradução livre:

As folhas das

árvores de calabaça

não se chocam;

dão uma cabaça

verde, queima como cobre

na luz, racham

sementes

que chacoalham.

Cego no subterrâneo, o escuro

do rato, dentes de serra,

sangra a raiz úmida, rompe

seu lento arrastar do tempo,

seu sabor áspero; torna

as folhas maduras azedas. Chacoalha,

canta, cabaça; nunca deixes

os dançarinos do tempo cansados como esta árvore,

que faz e zomba da nossa música.

 


 

 


 


 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

The Making of the Drum — 3. The Two Curved Sticks of the Drummer (Os dois bastões curvados do percussionista)

Depois da pele e da madeira, chega a hora do gesto. O tambor, agora pronto, aguarda quem o faça vibrar. Em The Two Curved Sticks of the Drummer, Bob Chilcott volta o olhar para o percussionista, o mediador entre o instrumento e o mundo. É dele que virá o movimento, o ritmo, o sopro do tempo.

O poema de Kamau Brathwaite fala de uma árvore singular, cujos galhos brancos racham como relâmpagos no vento seco do harmatão, o vento que sopra do Saara, áspero e luminoso. Dessa árvore, os anciãos extraem os galhos que se tornarão os bastões do baterista. Madeira dura, “sem som como um osso”, que só encontrará voz quando tocar o tambor.

Há aqui uma bela metáfora: os bastões não produzem som por si mesmos, só existem na relação. Eles são a extensão das mãos humanas, o elo entre a matéria e o espírito. O tambor só fala quando é tocado, e o homem só fala plenamente quando encontra o ritmo certo.

Musicalmente, este é um dos movimentos mais vibrantes da obra. Chilcott compõe com energia e leveza, usando ritmos vivos, sincopações e ostinatos que evocam o som dos bastões em ação. O coro se torna corpo rítmico: canta, sopra, marca o pulso, respira junto. Em certos trechos, parece que os próprios cantores empunham bastões invisíveis, transformando a voz em percussão e o silêncio em espaço sonoro. É uma celebração da habilidade humana e da conexão entre gesto e som.

Os bastões curvados, que antes foram ramos da floresta, agora marcam o compasso da vida. E o percussionista, com eles nas mãos, torna-se aquele que une o humano ao divino. Não apenas um músico, mas o condutor de um rito de comunhão, e depois do sacrifício da pele e da árvore, vem o gesto que une tudo. 

Os bastões do percussionista representam a ação humana que transforma o potencial em som. Eles são extensão, continuidade e ponte. A música de Chilcott traduz isso com vitalidade: é o pulso da criação em movimento.

O tambor, agora completo, encontra o seu companheiro natural, o homem que o desperta. E, a cada batida, o que era matéria se torna espírito; o que era silêncio se torna celebração.

Vou sugerir a audição da bela interpretação Taipei Chamber Singers, sob a regência de Yun-Hung Chen. Esta primeira peça vai do minuto 5:45 até 7:55. E no próximo post, eu falarei sobre a quarta parte: Gourds and Rattles.

🎧 The Making of the Drum (Bob Chilcott) - Taipei Chamber Singers / Conductor: Yun-Hung CHEN


The Two Curved Sticks of the Drummer

(Edward Kamau Brathwaite)

There is a quick

stick grows in the forest,

blossoms twice yearly

without leaves;

bare white branches

crack like lightning

in the harmattan.

But no harm

comes to those who live near-by.

This tree, the

elders say, will never

die.

From this stripped tree

snap quick sticks for

the festival. Its wood,

heat-hard as stone,

is toneless as a bone.

 

Tradução livre:

Há um galho rápido

que cresce na floresta,

floresce duas vezes por ano

sem folhas;

brancos e nus, seus galhos

racham como relâmpagos

no harmatão*.

Mas nenhum mal

acontece aos que vivem por perto.

Esta árvore, dizem

os anciãos, nunca

morrerá.

Desta árvore despojada

quebram-se galhos rápidos

para o festival. Sua madeira,

dura como pedra,

é sem som como um osso.


O harmatão é um vento seco e frio que sopra do deserto do Saara para o oeste da África, geralmente ocorrendo entre o final de novembro e o início de março. Este vento é caracterizado por transportar grandes quantidades de poeira e areia do deserto, criando uma névoa densa que pode reduzir a visibilidade e afetar a qualidade do ar. No contexto da poesia ou literatura, o harmatão pode ser usado como uma metáfora para condições austeras ou para evocar imagens de paisagens áridas e inóspitas.

 





 

domingo, 12 de outubro de 2025

The Making of the Drum — 2. The Barrel of the Drum (O corpo do tambor)

Depois da pele, vem o corpo. Em The Barrel of the DrumBob Chilcott nos leva ao coração da floresta, onde a árvore é escolhida para se transformar no tambor. O texto de Kamau Brathwaite descreve o ato de cortar a madeira como um ritual de passagem, uma mistura de força e reverência. A árvore é ferida, mas sua seiva, “sangue oco”, torna-se o útero do som que virá.

A peça fala de transformação e renascimento. A madeira deixa de ser árvore e passa a ser voz: matéria moldada, corpo que sustenta a vibração. Há respeito nesse gesto, uma consciência de que a natureza oferece o seu corpo para que o homem possa falar com o divino.

Chilcott traduz esse processo com uma escrita coral sólida, quase escultural. A música começa como se fosse uma única voz, firme e enraizada, e aos poucos se abre em camadas harmônicas que evocam o trabalho do entalhe, o corte, o esforço. O ritmo tem algo de artesanal, como o som das ferramentas que moldam a madeira.

Em certos momentos, o coro parece respirar junto com a floresta: o som do machado e o eco da terra se misturam à pulsação humana. O resultado é um movimento que fala sobre a comunhão entre o homem e a matéria, e sobre o respeito necessário à criação.

Nada aqui é apenas técnico; tudo é simbólico. A madeira é ferida, mas dela nasce a música. E o tambor, como um corpo, ganha alma.

 Este segundo movimento é o centro físico da obra: o momento em que o som encontra seu corpo. É uma canção sobre o poder criador da matéria e sobre o respeito que devemos ter por tudo o que nos dá voz. É uma música de textura simples e profunda, onde o corte da madeira se transforma em batida, e o gesto humano se converte em rito. A árvore não morre, ela se torna instrumento. E, quando o tambor falar, sua voz ainda trará o som da floresta.

Vou sugerir a audição da bela interpretação Taipei Chamber Singers, sob a regência de Yun-Hung Chen. Esta primeira peça vai do minuto 2:10 até 5:45. E no próximo post, eu falarei sobre a terceira peça: The Two Curved Sticks of the Drummer.

  

🎧 The Making of the Drum (Bob Chilcott) - Taipei Chamber Singers / Conductor: Yun-Hung CHEN


The Barrel of the Drum

(Edward Kamau Brathwaite)

For this we choose wood

of the tweneduru tree:

hard duru wood

with the hollow blood

that makes a womb.

Here in this silence

we hear the wounds

of the forest;

we hear the sounds

of the rivers;

vowels of reed-

lips, pebbles

of consonants,

underground dark

of the continent.

You dumb adom wood

will be bent,

will be solemnly bent, belly

rounded with fire, wounded

with tools

that will shape you.

You will bleed,

cedar dark,

when we cut you;

speak, when we touch you.

 

Tradução livre:

Para isso, escolhemos a madeira

da árvore de tweneduru:

madeira dura de duru

com o sangue oco

que faz um útero.

Aqui, neste silêncio,

ouvimos as feridas

da floresta;

ouvimos os sons

dos rios;

vogais de lábios

de junco, seixos

de consoantes,

escuridão subterrânea

do continente.

Tu, muda madeira adom,

serás dobrada,

serás solenemente dobrada,

barriga arredondada com fogo, ferida

por ferramentas

que irão moldar-te.

Sangrarás,

cedro escuro,

quando te cortarmos;

falarás,

quando te tocarmos.

  


 

 

O Requiem de Mozart e a celebração da vida

Hoje, Dia de Finados, mais uma vez o Requiem de Mozart ecoará na Catedral da Boa Viagem, em Belo Horizonte. É uma tradição que o Coro Madri...