domingo, 19 de outubro de 2025

Only in Sleep — o sonho que canta

Há músicas que parecem existir num espaço entre o tempo e a memória. Only in Sleep, do compositor Ēriks Ešenvalds, é uma delas.

Escrita em 2010 para o University of Louisville Collegiate Chorale e o Cardinal Singers, a obra parte de um poema de Sara Teasdale, poetisa americana do início do século XX, que fala da infância revivida nos sonhos. 

É uma canção de lembrança, mas também de reencontro, um olhar para o passado com a ternura de quem o revive apenas quando adormece.

Ešenvalds traduz essa nostalgia com uma música de frases regulares e harmonias suaves, mas ricas em cor e detalhe. Cada acorde parece respirar, e cada transição em vocalises cria pequenas ondas de emoção, como se a música fosse feita de névoa e memória. Nada é dramático, nada é imposto. A força da peça está na delicadeza, naquilo que é quase silêncio.

A soprano solista, que abre a obra, volta no final. Sua linha melódica é como um fio de luz: flutua sobre o coro, ornamenta-se em arabescos, e se dissolve lentamente até desaparecer. Entre a primeira e a última nota, o ouvinte é levado a um espaço interior, onde a lembrança e o sonho se confundem.

Musicalmente, Only in Sleep é um exercício de equilíbrio: entre simplicidade e refinamento, entre estrutura e lirismo. O coro sustenta a solista com acordes que oscilam como um coração tranquilo, um pulso contínuo de serenidade. Ešenvalds domina como poucos a arte da harmonia coral contemporânea: cada voz tem um papel preciso, e o resultado é de uma beleza quase translúcida.

Mais do que uma obra sobre o sono, Only in Sleep fala do poder da memória e da música de despertar o que dorme dentro de nós, porque há lembranças que só cantam quando fechamos os olhos.

Only in Sleep — texto original (Sara Teasdale)

Only in sleep I see their faces,
Children I played with when I was a child,
Louise comes back with her brown hair braided,
Annie with ringlets warm and wild.

Only in sleep Time is forgotten—
What may have come to them, who can know?
Yet we played last night as long ago,
And the doll-house stood at the turn of the stair.

The years had not sharpened their smooth round faces,
I met their eyes and found them mild—
Do they, too, dream of me, I wonder,
And for them am I too a child?


Tradução poética (Arnon Oliveira)

Só no sono eu vejo seus rostos,
As crianças com quem brinquei quando era criança.
Louise retorna com suas tranças castanhas,
Annie, com os cachos soltos e quentes.

Só no sono o tempo é esquecido —
O que foi delas, quem pode saber?
Mas ontem à noite brincamos como antes,
E a casa de bonecas estava no alto da escada.

Os anos não afiaram seus rostos redondos,
Encontrei seus olhos e os vi serenos —
Será que elas também sonham comigo, pergunto,
E para elas, serei eu também uma criança?

🎧 Sugestão de audição: Only in Sleep — Ēriks Ešenvalds, com o Choir of Trinity College, Cambridge, regência de Stephen Layton.

Assista no YouTube

 

 

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Sobre o compositor: 

Ēriks Ešenvalds é um dos nomes mais expressivos da nova geração de compositores corais europeus. Nascido na Letônia em 1977, formou-se na Academia de Música da Letônia e tornou-se conhecido por uma escrita profundamente lírica, de harmonias transparentes e espiritualidade silenciosa. Sua música combina técnica apurada com emoção direta: o sagrado e o humano sempre em diálogo. Obras como O Salutaris Hostia, Stars e Only in Sleep revelam um compositor que entende o coro como espaço de ressonância interior, onde som e luz parecem falar a mesma língua.

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