terça-feira, 30 de setembro de 2025

O Madrigal na Bélgica e na Holanda – 1958

Depois da França, o Madrigal Renascentista chegou a Bruxelas em 27 de fevereiro de 1958. A princípio, seria apenas uma passagem, já que o coro tinha compromissos oficiais na Holanda. Mas a visita à embaixada brasileira acabou mudando os rumos. O deputado pernambucano Carlos de Lima Cavalcanti, impressionado com o grupo, organizou às pressas uma apresentação no Salon des Beaux-Arts, um dos principais centros culturais belgas da época.

Na plateia estavam críticos locais e o francês Marcel Cuvellier, presidente e fundador das Jeunesses Musicales International. O entusiasmo foi imediato. O Madrigal foi convidado a cantar no congresso internacional da instituição, que reunia músicos do mundo inteiro em Bruxelas. A soprano Maria Amália Martins se lembrava da cena com emoção:

“Eram 100 músicos de toda a Europa. De todo o mundo! O melhor pianista, o melhor cantor… E nós fomos convidados pra cantar pra eles. Pra mim foi a coisa mais impressionante que eu já vi, porque a gente estava chegando na Europa. Ninguém sabia qual recepção a gente ia ter. Foi assim uma coisa tão entusiástica… Eles fizeram a gente voltar umas 15 vezes ao palco. Exigiam que a gente cantasse… Era uma coisa impressionante, eles batiam pé, palma, não deixavam a gente sair.”

O impacto foi tanto que Cuvellier declarou: “Fiquei impressionado pela mestria e técnica de seu regente, que muitos corais europeus poderiam invejar. Sua tournée pela Europa trará a este conjunto os sucessos de que todos são merecedores.”

Da Bélgica, o coro seguiu para a Holanda, único país onde já havia um convite oficial ainda no Brasil. A agenda foi intensa: apresentações na Embaixada do Brasil em Amsterdã, na Universidade das Nações Unidas, em uma igreja presbiteriana, além de encontros com corais locais. Em Haia, foram recebidos no Instituto Cultural Holanda-Portugal-Brasil e, em Utrecht, houve recepção oficial pelo burgomestre da cidade, seguida de concerto no Centro Cultural Holandês-Hispano-americano.

Ali, a recepção mostrou-se ainda mais significativa. Não era um público desavisado, mas plateias acostumadas ao canto coral, em um país onde, como registrou Karabtchevsky em carta ao Diário de Minas, “cada lugarejo conta com quatro ou cinco corais”. O Madrigal encontrava, assim, um terreno fértil de escuta e de diálogo.

Esses episódios deixam claro como a excursão de 1958 foi marcada tanto pela música quanto pela política. A cada concerto, o coro era aplaudido como grupo artístico de alto nível, mas também se via inserido em circuitos oficiais, acolhido por embaixadas, instituições e políticos. A música servia de ponte entre povos, mas também de representação de Estado.

 


👉 No próximo post, seguiremos para a Suíça e a Alemanha, refletindo sobre como a presença do Madrigal nesses países, ainda em reconstrução no pós-guerra, reforçou seu papel como instrumento de diplomacia cultural.

 👉👉 Fontes no livro em: o_coro_do_brasil_o_madrigal.pdf 


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Quando a fome fala mais alto que a música contemporânea

Paris, fevereiro de 1958. O Madrigal Renascentista já tinha feito bonito no concerto do Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine: aplausos calorosos, sete “extras” pedidos pela plateia e a certeza de que a música mineira tinha atravessado o Atlântico com força. Entre os presentes, nomes de peso, inclusive um crítico brasileiro, Eurico Nogueira França, que profetizava sucesso internacional para o coro.

Mas um fato engraçado estava por vir, e aqui faço um parênteses para lembrar, ou informar, que mineiros, a exemplo dos italianos, têm um problema com os horários de alimentação. Pois, vamos lá: entre os ouvintes, ninguém menos que Pierre Boulez — maestro, compositor, pianista, escritor e já então uma das figuras mais respeitadas do mundo musical. Talvez impressionado com a apresentação, ele convidou o coro (ou alguns cantores) e o regente Isaac Karabtchevsky para uma visita à sua casa. Lá, ofereceu uma palestra sobre suas pesquisas de ponta em música eletroacústica.

Isaac não perdeu a chance: escreveu para o Diário de Minas destacando que Boulez estava “satisfeito por saber que já existia em Belo Horizonte pelo menos um grupo, pequeno, mas representativo, que compreendia e assimilava uma nova corrente na expressão musical.” Belo Horizonte, afinal, não ficava atrás de Paris.

Só que a história, contada de dentro, soa um pouco diferente. A ex-coralista Maria Amália Martins deixou registrada a cena:

“Houve um mal-entendido na conversação com o mestre francês, que entendeu ser o grupo um representante das universidades brasileiras. Ele então resolveu proferir a palestra para todos... em francês. Claro que esta foi pouco assimilada, pois todos os cantores estavam com fome e não entendiam praticamente nada do que Boulez dizia.”

E assim, o encontro histórico entre o Madrigal e o papa da vanguarda francesa ficou marcado não tanto pelo mergulho na música eletroacústica, mas pelo coro faminto tentando acompanhar, sem sucesso, uma aula que parecia em outro idioma (e era mesmo, em vários sentidos).

 


👉 No próximo post, sigo acompanhando a excursão de 1958 e como a passagem pela Bélgica e Holanda reforçou ainda mais esse papel diplomático.

 

 


domingo, 28 de setembro de 2025

O Madrigal em Paris – Entre polifonias e diplomacia

No dia 24 de fevereiro de 1958, o Madrigal Renascentista se apresentou em uma audição na Televisão Francesa. Foi um momento marcante da excursão europeia: cantar em Paris significava entrar no grande palco internacional, em uma cidade que, desde o século XIX, já era ponto de encontro entre Brasil e França.

As relações culturais entre os dois países vinham de longe. A França buscava difundir sua língua e cultura no Brasil, enquanto o Brasil enviava jovens músicos para estudar em Paris, muitas vezes apoiados por bolsas de estudo. Até a década de 1930, esse intercâmbio era feito de forma esparsa, sem uma política organizada.

Isso começou a mudar com a participação brasileira no Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI), criado em Paris em 1925. O Itamaraty nomeou Élysée Montarroyos como delegado, e ele logo percebeu o potencial da cultura como forma de projeção internacional. Em 1932, propôs a criação de um serviço voltado para essa função, o que levou ao Serviço de Expansão Intelectual, fundado em 1934. Sua lógica era clara: “judiciosamente conduzida, a propaganda intelectual de um país abre-lhe novos caminhos para sua propaganda econômica.”

Décadas depois, já na UNESCO, nomes como Luiz Heitor Corrêa de Azevedo ampliaram essa rede de contatos, promovendo artistas brasileiros e garantindo espaço para a difusão da nossa cultura. Em Paris, havia também iniciativas como o programa de rádio Aquarelles du Brésil (1957–1975), transmitido pela Radiodifusão Francesa, que apresentava semanalmente aspectos da música popular e folclórica do Brasil. E foi nesse programa que o Madrigal cantou...

A beleza da polifonia se somava, assim, à engrenagem da diplomacia. A presença do coro na Cidade Luz não pode ser vista apenas como mais um concerto de turnê: fazia parte de uma estratégia que já vinha sendo construída há décadas. Paris, com sua aura de capital cultural do Ocidente, servia de vitrine. O Madrigal cantava, mas atrás dele havia toda uma política que transformava o canto em representação.



Karabtchevsky rege apresentação na Tv Francesa (Acervo Madrigal Renascentista)


 👉 No próximo post, um respiro para mostrar que nem só de música viviam os cantores durante a excursão... uma blague envolvendo Pierre Boulez.

 👉👉 Fontes no livro em: o_coro_do_brasil_o_madrigal.pdf


 

 




sábado, 27 de setembro de 2025

O Madrigal em Madri – Diplomacia em forma de canto

O Madrigal Renascentista chegou a Madri em 13 de fevereiro de 1958. A recepção aconteceu na própria sede da Embaixada Brasileira, sob os cuidados do embaixador João Pizarro Gabizo de Coelho Lisboa, irmão da escritora Henriqueta Lisboa. Conta-se que o diplomata se comoveu ao ouvir as canções apresentadas pelo coro. Ali também estava o escritor mineiro Murilo Rubião, então chefe do Escritório Comercial do Brasil na Espanha, que anos mais tarde viria a ser presidente do Madrigal.

Nos dias seguintes, o coro se apresentou novamente nos salões da embaixada (14 de fevereiro) e realizou um concerto no Instituto de Cultura Hispânica (15 de fevereiro), seguido de um coquetel oferecido pelo embaixador (17 de fevereiro). É importante sublinhar: o centro da agenda madrilenha não foi o público comum, mas os espaços diplomáticos. O Madrigal cantava para plateias compostas por autoridades, convidados das embaixadas, representantes de governo. Isso já mostra o caráter eminentemente político da viagem.

Essa visita não pode ser dissociada das relações Brasil–Espanha no período. Na década de 1950, os dois países buscavam aproximar-se em comércio, cultura e imigração. O próprio JK, ainda antes de tomar posse, em 1956, já havia feito questão de visitar Franco e receber, em Madri, o título de Doutor Honoris Causa pela Real Academia Española. Em seu discurso, não deixou de sublinhar a afinidade estratégica entre os dois países, apoiada nos valores cristãos que Franco usava como sustentação ideológica do seu regime:

“Esta homenagem cordial e carinhosa autoriza-me a falar em nome do Brasil da simpatia e afeto que ali se sente pela Espanha, e a afirmar que nos dois países existe um ideal comum, já que temos a mesma filosofia e o mesmo sentido cristão das cousas, seguros de que assim nos salvaremos todos.”

É incômodo, mas necessário, lembrar: o Madrigal foi recebido e aplaudido dentro desse mesmo ambiente. A música servia, ao mesmo tempo, como arte e como reforço simbólico de alianças políticas. Enquanto o coro cantava polifonias, o governo brasileiro afirmava proximidade com o regime franquista.

Essa sobreposição entre beleza e política é um dos paradoxos da diplomacia cultural: o concerto pode comover um embaixador, emocionar um público, mas também legitimar um regime. É olhando para essas tensões que podemos compreender a dimensão real do que significou cantar em Madri em 1958.

 


👉 No próximo post, sigo acompanhando o Madrigal em outras paradas da excursão, refletindo sempre sobre o quanto de música e o quanto de política havia em cada apresentação.

 

 


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

O Madrigal em Portugal – A porta de entrada para a Europa

A primeira viagem do Madrigal Renascentista à Europa começou por Portugal. Penso que há um simbolismo aí: a estreia do coro no continente se deu justamente neste país com quem o Brasil sempre manteve laços profundos, mas que vivia, então, os tempos duros da ditadura de Salazar. Pois bem, JK era amigo do ditador português...

O caminho até essa viagem teve sua história curiosa. As passagens foram conseguidas graças a Rosa Godoy, a Pitucha, que interceptou o presidente JK no aeroporto da Pampulha e arrancou dele o apoio necessário. Entre coragem e esperteza, ficou garantido que o coro cruzaria o Atlântico.

Em Portugal, o Madrigal foi bem recebido. Mas não só pelo público ou pela crítica. Houve também a recepção oficial: o coro foi apresentado ao próprio António de Oliveira Salazar. Esse encontro mostra que a excursão estava longe de ser apenas artística. A música servia também como aproximação entre governos, e não podemos esquecer o peso simbólico disso.

Outro detalhe importante: em várias cidades, as apresentações aconteceram nas embaixadas brasileiras. Ou seja, não se cantava apenas para o público local, mas também para diplomatas e convidados ligados ao governo. Fica a pergunta: quando se canta em uma embaixada, a quem se oferece a música?

Isso não diminui o valor artístico do Madrigal, mas ajuda a entender melhor a sua função naquele momento. A excursão de 1958 foi, sim, um ato de diplomacia cultural, em que arte e política se misturavam sem que fosse possível separar totalmente uma da outra.

Escrevendo de Lisboa hoje, é impossível não pensar nesse paradoxo. A música pode ser beleza e criação autêntica, mas também pode servir a interesses de regimes e governos. O desafio é olhar para essa história sem ingenuidade, tentando perceber suas várias camadas.



👉 No próximo post, sigo com a viagem e as passagens do coro por outros países da Europa, pensando cada vez mais nesse cruzamento entre música e diplomacia.

 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O Madrigal em registros sonoros - Memória que se ouve

Se contar um pouco da história do Madrigal Renascentista é importante, mais ainda é poder ouvir essa história. Até 1965, o coro deixou gravado um conjunto significativo de peças que, felizmente, chegaram até nós. São documentos sonoros que nos dá uma ideia do som daquele coro. Daquele porque o Madrigal mudou ao longo do tempo, e, consequentemente, sua personalidade sonora também.

Essas gravações estão reunidas no canal que mantenho no YouTube:

👉 https://www.youtube.com/@maestroarnon/videos

Não são apenas lembranças: tratam-se de fontes históricas que ajudam a compreender o percurso do Madrigal em seus primeiros anos. Cada registro carrega marcas de estilo, de escolhas artísticas e da forma como o coro se afirmava no cenário cultural brasileiro.

Vale insistir: sem esses documentos, muito desse percurso ficaria perdido. Torná-los acessíveis é, ao mesmo tempo, preservar a memória e oferecer material para novas leituras e pesquisas.

Vale a exploração dessas gravações e a escuta não apenas a música, mas também a percepção do contexto que ela carrega. É memória viva, disponível para todos.

 


👉 No próximo post, retomaremos a narrativa da excursão de 1958, começando por Portugal, a primeira etapa dessa viagem.

 


quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O Madrigal na Europa (1958) - Quando a música vira diplomacia

Em 1958, apenas dois anos após sua estreia em Belo Horizonte, o Madrigal Renascentista embarcou em sua primeira excursão internacional. O itinerário foi impressionante: Portugal, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Suíça, Alemanha e Itália. De Minas Gerais para a Europa, um coro ainda amadurecendo em sua proposta artística se apresentava em alguns dos principais centros culturais do velho continente.

Não se tratava apenas de música. O Brasil vivia os anos do governo JK, marcados pelo desejo de mostrar ao mundo um país moderno, dinâmico e culturalmente sofisticado. O Madrigal, com sua qualidade musical e repertório refinado, encaixava-se perfeitamente nessa imagem.

Essa excursão de 1958 foi, na prática, um ato de diplomacia cultural: a música usada como cartão de visitas, como ponte entre nações. Cada concerto funcionava como afirmação de que o Brasil podia dialogar de igual para igual no cenário internacional, levando uma mensagem de cultura e modernidade.

Por trás desse feito, havia circunstâncias concretas: o apoio do governo, as conexões culturais de Minas, a mediação de instituições como a Pró-Arte, tudo isso foi determinante. Não se pode ler a história como mero triunfo espontâneo: havia talento, mas também contexto político e redes de poder que abriram caminhos.

O Madrigal Renascentista consolidava-se, assim, como símbolo de um projeto de país. A música atravessava fronteiras, mas também carregava consigo a representação de um ideal político e cultural.

São muitas as informações e detalhes dessas viagens, mais do que caberia registrar num espaço de blog. Por isso, mais uma vez, convido os leitores a baixarem o livro O Coro do Brasil: o Madrigal Renascentista, no link o_coro_do_brasil_o_madrigal.pdf, onde essa história é contada de maneira mais ampla.

 

 

Madrigal em Portugal (1958)


👉 Nos próximos textos, quero trazer episódios específicos dessa excursão e refletir sobre o que ela significou: para o Brasil que buscava se afirmar no exterior e para o conceito de diplomacia cultural que guiava esse movimento.

 

 


terça-feira, 23 de setembro de 2025

JK, Clóvis Salgado e o Madrigal

Quando a política encontra a música

No dia 11 de janeiro de 1957, véspera da apresentação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o Madrigal Renascentista viveu um daqueles momentos que mudam a trajetória de um grupo. Foram recebidos no Palácio do Catete pelo presidente Juscelino Kubitschek. Foi a primeira vez que JK ouviu o Madrigal e os jovens, que foram apresentados a ele pelo então Ministro da Educação e Cultura, Clóvis Salgado.

Na mesma viagem, surgiu também o primeiro convite para uma excursão à Europa, feito por um representante da Pró-Arte, do Rio de Janeiro. Entusiasmado com a apresentação do coro, ele propôs uma temporada no exterior, lembrando a visita recente de um grupo vocal catalão ao Brasil. O comentário foi categórico: o Madrigal poderia se apresentar em qualquer parte do mundo artístico sem ficar devendo a nenhum conjunto similar. E isso, de fato, aconteceu em 1958, quando o Madrigal Renascentista fez a sua primeira excursão à Europa

É importante notar que esse encontro não aconteceu no vazio. Além do talento musical, havia também a inserção do grupo em círculos influentes da política e da cultura mineira, conexões que abriram caminhos. O apoio de JK foi decisivo, mas não no sentido simplista de que “o Madrigal só existiu por causa dele”. O que houve foi um jogo mais complexo: de um lado, um presidente hábil em usar a cultura como símbolo de modernização; de outro, um coro jovem, disposto a encarnar esse ideal e a se tornar representante da cultura brasileira.

Isaac Karabtchevsky lembra assim em um trecho do seu livro:

“O Juscelino era muito identificado com o coro. Lembro da gente fazendo serenata para ele, cantando ‘É a ti flor do céu’ e diversas canções do folclore mineiro. Foi ele que patrocinou, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, várias turnês internacionais do Madrigal. No governo JK nós viajamos para o Uruguai, a Argentina, o Chile, os Estados Unidos e a Europa. Também percorremos o Brasil.” (Karabtchevsky, O que é ser maestro. Record, 2003, p. 30)



 Madrigal Renascentista em 1957. (Acervo Madrigal Renascentista)


👉 No próximo post, falarei um pouco sobre essa excursão do coro e aquilo que muito me interessa nessa pesquisa: o conceito aplicado de diplomacia cultural.

 


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A força de vontade da juventude - Quando o impossível parece natural

O primeiro concerto do Madrigal Renascentista aconteceu em 2 de fevereiro de 1956, no auditório da Sociedade Mineira de Engenheiros, em Belo Horizonte. Jovens ainda, alguns quase iniciantes, reunidos mais pela paixão pela música do que por um projeto estruturado, apresentaram-se em público e, para surpresa de muitos, foram recebidos com entusiasmo. Havia ali um frescor sonoro, uma energia coletiva e uma novidade que ultrapassavam o simples “ajuntamento” de estudantes.

Em meio àquela vibração, Karabtchevsky disse a frase que ficou como marco: “No próximo ano, estaremos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.” À primeira vista, podia soar como um exagero juvenil, mas não demorou para que se tornasse realidade. Em pouco tempo, o Madrigal estava no palco mais prestigiado do país, cumprindo uma profecia que parecia impossível.

É claro que esse feito não se deve apenas à ousadia da juventude ou a um grande talento musical. Esses jovens circulavam em ambientes influentes da cidade, próximos a famílias e instituições que tinham peso na vida cultural mineira. Isso abriu portas, favoreceu convites, acelerou processos. O sonho se realizou também porque encontrou terreno fértil nas redes de sociabilidade e nos espaços de poder.

A lição que fica é dupla: de um lado, a força de vontade da juventude, que acredita e arrisca sem medir tanto os obstáculos; de outro, a consciência crítica de que a arte também se move em meio a estruturas sociais, privilégios e conexões que influenciam seu alcance. O Madrigal nasceu justamente nesse cruzamento entre ideal e realidade, entre sonho e circunstância.

 

O Madrigal no Municipal do Rio, em 1957.


👉 Nos próximos textos, vou falar sobre esses primeiros passos, que levaram o coro a conhecer JK e Clóvis Salgado, aqueles que pensaram o Madrigal como uma referência cultural e diplomática.

 


domingo, 21 de setembro de 2025

A fundação de um coro (Madrigal Renascentista)

 Revisitar o Madrigal Renascentista é como voltar a um ponto de origem. Sua história começa em 1956, quando um grupo de jovens, movidos pelo entusiasmo da música e pela força de um tempo em transformação, deu corpo a um coro que logo ultrapassaria os limites de Belo Horizonte.

Era um Brasil que respirava modernização, mas também tensões políticas. Em Minas, a vida cultural se agitava: universidades se expandiam, teatros se consolidavam, grupos artísticos nasciam com o impulso de afirmar uma identidade própria. Foi nesse ambiente que surgiu o Madrigal, trazendo o nome Renascentista como um manifesto de estética e de visão de mundo.

O livro descreve esse início como um gesto coletivo, mas também como fruto da liderança de jovens regentes e cantores que começaram, mineiramente, quase por acaso, ali na casa de Carlos Alberto Pinto Fonseca, solfejando coletivamente, polifonicamente, algumas peças renascentistas que ele, Isaac Karabtchevsky e Carlos Eduardo Prates estavam descobrindo nas aulas com Koellreutter em São Paulo. Na conjunção com Maria Lúcia Godoy, Malinha e Melinha, Terezinha Miglio e outros não menos importantes, perceberam que aquilo era mais do que um simples ajuntamento e se propuseram a uma apresentação. Coisas que a juventude permite sem grandes preocupações. Não demorou muito para acreditarem que a música coral poderia ocupar um espaço de protagonismo no cenário belorizontino, mineiro e brasileiro. Depois, veio a Europa...

Uma bela história que, eu acredito, merece ser lida porque ajuda a entender não apenas a gênese de um grupo, mas também a atmosfera de uma cidade e de um país. O Madrigal Renascentista nasceu pequeno, mas nasceu com vocação de grandeza: era, ao mesmo tempo, o ensaio de uma obra e o esboço de uma política cultural.


 Cantoras fundadoras do Madrigal Renascentista. Da esquerda para a direita: Carmen Lúcia Gomes Batista; Clementina Lima Costa; Maria Lúcia Godoy; Yeda Prates Octaviani Bernis; Norma Augusta Pinheiro Graça; Ana Maria Godoy; Alda Perilo; Lúcia Amélia Prates; Lucíola Teixeira de Azevedo; Maria Amélia Martins, Maria Amália Martins e Terezinha Miglio. (Acervo Madrigal Renascentista)

👉 Ao longo dos próximos textos, trarei muito dessa pesquisa sobre o Madrigal e sobre o movimento coral em Belo Horizonte. Mas também abrirei espaço para outros cenários que merecem atenção. Vamos ver...

 E quem não viu o post anterior, o livro está aqui: o_coro_do_brasil_o_madrigal.pdf

sábado, 20 de setembro de 2025

O Madrigal Renascentista - um coro que virou história

Se ontem falei da música como instrumento de diplomacia cultural, hoje é hora de aproximar o foco e olhar para um protagonista desse processo: o Madrigal Renascentista, coro que nasceu em Belo Horizonte, em 1956, e que se tornaria um dos mais importantes cartões de visita culturais do Brasil nas décadas de 1950, 60 e 70.

Fundado em meio a um ambiente de efervescência artística e institucional, o Madrigal se destacou não apenas pelo nível musical refinado, mas também pela capacidade de dialogar com projetos políticos e diplomáticos. Era um coro que, ao mesmo tempo em que cantava obras do Renascimento e da modernidade, representava o país em palcos internacionais, levando consigo uma imagem de sofisticação cultural e de modernidade brasileira.

Esse protagonismo se deve, em parte, a figuras centrais como o jovem regente Isaac Karabtchevsky, que começava sua carreira e encontrou no Madrigal um espaço de experimentação e afirmação, e a soprano Maria Lúcia Godoy, cuja presença cativante levou a música brasileira e internacional a plateias diversas, tornando-se um dos rostos mais visíveis da arte mineira naquele período.

O reconhecimento desse papel se reflete também nos registros escritos. O primeiro livro dedicado ao Madrigal Renascentista já apontava a relevância do grupo no contexto cultural mineiro e nacional, reunindo memórias, depoimentos e análises que ajudam a compreender como um coro de jovens pôde alcançar tamanho protagonismo. Na minha sequência de pesquisas, penso que revisitar esse livro hoje é essencial porque ele nos oferece um retrato da época e, ao mesmo tempo, abre caminhos para novas perguntas e novas leituras.

Nas próximas postagens, quero explorar alguns trechos dessa obra, dialogando com documentos de arquivo e com minhas próprias impressões de pesquisador. Mais do que contar uma história, trata-se de revisitar e refletir sobre uma memória viva, que ainda ecoa nas partituras, nos relatos e, sobretudo, nas pessoas que participaram dessa trajetória.

 


📖 Para aqueles que quiserem, o livro está disponível em: o_coro_do_brasil_o_madrigal.pdf

 


sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Diplomacia cultural e o Madrigal Renascentista - quando a música se torna embaixadora

Um dos motivos de eu estar aqui, em Portugal, é entender cada vez mais o alcance daquilo que chamamos de diplomacia cultural. Em linhas simples, trata-se do uso da cultura — música, literatura, artes, esportes — como ferramenta de aproximação entre povos e como representação oficial de um país diante do mundo. Não é apenas intercâmbio artístico: é política feita por meio da arte. Basta olhar para a história recente para percebermos como a música foi usada como cartão de visitas de muitos governos, sobretudo em períodos mais duros da política.

Há tempos pesquiso sobre o movimento coral em Belo Horizonte, e o Madrigal Renascentista se tornou um objeto dessa investigação não só pela sua importância no cenário da música coral de câmara, mas também pela sua representação como cartão oficial de visitas de um país: um grupo de vozes que carregava, para fora das fronteiras, uma imagem de civilização, sensibilidade e refinamento cultural. Era como se cada concerto fosse uma carta de apresentação do Brasil ao mundo.

 Portugal, nesse contexto, foi um destino recorrente. Sempre bem acolhido, o coro encontrava aqui não apenas plateias, mas também uma ligação histórica e simbólica. Afinal, apresentar-se em Portugal significava reforçar laços, revisitar origens e, de certo modo, mostrar um Brasil que buscava afirmar-se no cenário internacional.

 Entender um pouco desse país e do momento político em que essas apresentações aconteceram é essencial para compreender o que realmente se buscava nessas viagens. Não se tratava apenas de música, era diplomacia em forma de canto.

 Este será um dos fios que pretendo puxar ao longo dos próximos textos: como a música coral brasileira, e em especial o Madrigal, atuou como ponte entre culturas, povos e governos. E como, por trás dos aplausos e das partituras, se desenhava também uma estratégia de presença internacional.


(Foto: Madrigal Renascentista em apresentação em Portugal em 1958)

 

👉 No post de amanhã, falarei um pouco mais sobre o Madrigal Renascentista e de um primeiro livro que trata de sua história, costurando memórias e documentos para entender como esse coro se tornou símbolo de um tempo e de uma política cultural.

 



quinta-feira, 18 de setembro de 2025

UM RECOMEÇO


Olás!!! Depois de um bom tempo de silêncio, volto a abrir este espaço de escrita, agora em um novo tempo da minha vida. O blog nasceu, anos atrás, da vontade de registrar, partilhar e refletir sobre a música, os coros, os encontros e até os desencontros que a vida foi trazendo. Durante muito tempo, as histórias do Madrigale ocuparam quase todo o espaço por aqui. Hoje, continuo trazendo a música como centro, mas o blog não será apenas sobre um coro, um grupo ou um período. Será sobre a travessia...

Escrevo de Portugal, onde vivo um novo ciclo de estudos e de vida. Ando cercado de vozes, partituras, arquivos e também de histórias antigas que parecem querer se reencontrar comigo. Ao mesmo tempo, carrego comigo o Brasil, as lembranças de tantos concertos, os amigos de estrada e essa teia invisível que a música sempre cria entre nós.

Quero que este blog seja um pouco de tudo: espaço de memória, diário de bordo, janela para o que ando pesquisando e também para o que me atravessa como pessoa. Nem sempre falarei de música; às vezes será apenas um pensamento, uma paisagem, uma lembrança. Outras vezes, será uma obra comentada, um compositor revisitado, um concerto compartilhado.

Acredito que escrever é, também, reger palavras: dar-lhes tempo, respiro, intensidade. Sendo assim, espero seguir regendo ideias e sentimentos, na tentativa de manter viva a chama da música e da reflexão.

Seja bem-vindo(a) a este recomeço.




O Requiem de Mozart e a celebração da vida

Hoje, Dia de Finados, mais uma vez o Requiem de Mozart ecoará na Catedral da Boa Viagem, em Belo Horizonte. É uma tradição que o Coro Madri...