“Repetition é ensaio em
francês.
E ensaiar é repetir, até que
o som se torne verdade.”
— Lumumba
Entre as muitas vozes que emergem dos registros e lembranças do Madrigal Renascentista, uma delas ressoa com força singular: Celiodivo Dias, o Lumumba. Em minha pesquisa, sua presença se torna mais que um depoimento, é uma bússola. Por meio de suas memórias, revivo a vibração intelectual e afetiva dos anos 1960, percebo a complexidade das relações dentro do coro e reencontro, com rara nitidez, a atmosfera da excursão aos Estados Unidos em 1965, quando o grupo leva a música brasileira a dezenas de cidades americanas. Ele é, em muitos aspectos, voz e consciência daquela geração coral.
Seu apelido evoca o líder congolês Patrice Lumumba e
condensa, em uma só palavra, o vigor político e o carisma humano que o
distinguem. “Houve um político congolês chamado Patrice Lumumba”, conta-me.
“Conseguiu unir onze províncias tribais e formar a República do Congo. Foi
derrubado por um golpe de Estado violento, supostamente inspirado pelos belgas.
Seu corpo nunca foi encontrado. Um mártir. Como ele ocupou o noticiário da
época, as pessoas começaram a chamar todo preto de Lumumba. E houve também um
baixo dos Cantores de Ébano, o grupo do Nilo Amaro, muito bom, que ficou
conhecido assim. O Isaac (Karabtchevsky) pensou nele quando me deu o apelido e
me perguntou se eu achava ruim. Respondi que não, pelo contrário, por causa da
admiração que tinha, e ainda tenho, pelo político congolês. Tenho até um pôster
dele no meu escritório.”
Sua presença no coro, a partir de 1963, simboliza o
encontro entre a efervescência intelectual da juventude mineira e a
sofisticação artística de um conjunto que, naquele momento, se torna referência
nacional. Sua história, entrelaçada à do coro, é também a história de uma época
em que a arte e o pensamento se encontram nas salas de ensaio, nas faculdades e
nos cafés de Belo Horizonte.
Filho de Eugênio, homem simples que tocava violão e se
orgulhou ao ver o filho cantar no “melhor coral do Brasil”, Lumumba é um desses
raros personagens que atravessam fronteiras: entre o popular e o erudito, entre
o político e o artístico, entre o entusiasmo da juventude e a serenidade do
ofício. Estudioso, curioso e inquieto, ele se aproximou do meio universitário
por vias inesperadas. Em 1963, conheceu o economista Guido Rocha,
ligado à POLOP (Política Operária), e participou de um curso informal
sobre marxismo na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Ali discutia Hegel,
Feuerbach e Marx, antes de ser convidado a escrever uma peça
infantil para as Ligas Camponesas.
Durante essa convivência, um violão casual e uma canção de Caymmi
revelaram sua voz grave e expressiva, descoberta que o levou, por intermédio de
João Bosco Rocha, até Maria Lúcia Godoy e Isaac Karabtchevsky.
O teste foi improvisado durante um ensaio. Isaac pediu-lhe
que repetisse um pequeno trecho que os baixos acabaram de cantar em “I Got
Religion.” Lumumba executou-o de imediato, afinado, seguro e expressivo. O
maestro o observou por alguns segundos e, batendo palmas, disse: “Pode sentar
ali com os baixos e continuar o ensaio.” Assim, sem partitura e sem
formalidade, ele foi admitido no Madrigal Renascentista. Um mês depois,
já cantava no Grande Teatro Central de Juiz de Fora, com um pequeno solo
em “Irene no Céu.”
O que o maestro avaliou naquele instante, Lumumba compreendeu
melhor anos depois: “Num só momento ele checou afinação, timbre, conhecimento
de língua estrangeira, dinâmica e bom gosto na emissão da voz. Foi um teste
musical completo, e humano também.” Essa percepção revela a essência de seu
talento: mais intuitivo que teórico, mais sensível que técnico, mais verdadeiro
que metódico.
No Madrigal, ele viveu o auge de sua formação musical. Recorda o rigor dos ensaios (de segunda a sexta, das 19h às 22h, e aos sábados à tarde) e a exigência de Isaac, que repetia cada trecho até obter a exata gradação dinâmica imaginada. “Diz-se que o som de um coral está na cabeça do maestro, e no caso do Madrigal, é verdade”, comenta.
Em 1965, participou da tournée norte-americana que projetou o coro como Coro do Brasil em solo americano. O ônibus com essa inscrição percorreu 47 cidades de 25 estados, e as críticas publicadas em jornais como The Washington Post, The Raleigh Times, El Dorado Daily News e St. Petersburg Times destacavam a perfeição técnica, o controle dinâmico e a emoção das apresentações. Lumumba descreve o entusiasmo dos públicos, auditórios de até três mil pessoas por noite, e a convivência leve entre os coristas, o maestro e o motorista Bill, “que fixava o acelerador para brincar nas retas asfaltadas.”
Mas também registra o choque político e humano: o impacto do apartheid no sul dos Estados Unidos. Os cartazes “For Colored People”, vistos em banheiros e restaurantes, o ferem profundamente. “Machucava a gente”, escreve. A experiência coincidia com a promulgação da Lei dos Direitos Civis, e ele associa o que via traçando um elo entre a causa negra americana e a desigualdade racial no Brasil. Sua consciência social e política confere ao grupo um olhar crítico raro entre artistas de classe média nos anos 1960.
De volta ao país, Lumumba seguiu cantando. Tornou-se baixo do Coral Lírico de Minas Gerais, onde permaneceu por dez anos como cantor contratado. Atuava em óperas, estudava árias de cor, auxiliava colegas com pronúncia de línguas estrangeiras e vivia plenamente o ofício de cantor. O fim desse ciclo, porém, é marcado por um episódio doloroso. Após uma década de dedicação, foi convocado a um teste para revalidação de vínculo. Contrariado e nervoso, declarou-se inseguro em teoria e solfejo, mas insistiram. Fez o teste e... foi reprovado.
“Tomei bomba”, conta, “e ali acabava, melancolicamente, o meu prazer de cantar ópera.”
Mas é justamente ao narrar esse episódio que Lumumba revela uma de suas ideias mais belas e mais críticas. Ele lembra, com ironia: “Repetition é ‘ensaio’ em francês. E o ensaio é feito de repetições. Repete-se até que se chegue perto da perfeição.” Essa observação, simples e profunda, toca o coração do fazer musical. Ser reprovado por uma deficiência de leitura, quando toda a arte do canto coral se constrói sobre a escuta, a memória e a capacidade de repetir com inteligência e emoção, é mais do que uma injustiça pessoal: é a imagem de uma tensão antiga entre o saber técnico e o saber sensível.
Lumumba nos lembra que muitos dos grandes cantores não são os que leem melhor, mas os que ouvem melhor, os que aprendem pela presença, pela entrega, pela experiência.
Aquele momento encerra simbolicamente sua trajetória como cantor, mas não como homem da música. O artista de voz grave e consciência lúcida sobrevive no narrador que revisita a própria história com humor, ironia e uma serenidade comovente. Sua memória é, ainda hoje, um testemunho essencial da vida coral mineira e das tensões que atravessam o campo artístico, entre dom e técnica, talento e burocracia, reconhecimento e esquecimento.
Lumumba é, enfim, o retrato de uma geração que faz da música não apenas um ofício, mas uma forma de pensar o mundo, e de repeti-lo, com beleza, até que se aproxime do essencial.
Bela homenagem, Arnon. E uma grande verdade aí: a leitura não pode ser o principal critério pra se reconhecer um(a) grande cantor(a). Conhecemos outros bons exemplos...
ResponderExcluirFantástico saber um pouco mais do nosso querido (e controverso, rs) Lumumba.
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