Volta e meia, a memória me traz de volta a um post que escrevi em 2015, uma homenagem simples, mas carregada de afeto, ao meu mestre, Sergio Magnani (1914-2001). Se estivesse vivo, ele completaria, hoje, 111 anos. Nesse dia, sinto a necessidade de ir além da efeméride e mergulhar na essência de seu legado, naquilo que ele nos ensinou sobre a tradição, a memória e, acima de tudo, o que significa ser músico.
O título, "Alô, Magnani",(1) é uma licença poética,
um desejo de estabelecer uma comunicação direta com o meu mestre, como se o seu
"telefone vermelho" estivesse sempre ativo, pronto para me (nos)
guiar.
Magnani, com sua sabedoria concisa, nos deixou aforismos que são verdadeiras bússolas para a vida cultural. Um deles ressoa com particular força:
A memória e a tradição é que faz a grandeza de um povo.
Esta frase não é apenas uma constatação histórica; é um
chamado à responsabilidade. Em um mundo onde a "memória recente se perde
muito fácil e é justamente a mais acessível", o mestre nos lembra que a
tradição não é um peso morto, mas o alicerce sobre o qual construímos nossa
identidade.
Para o músico, isso significa que a escuta e o conhecimento
não podem se limitar ao presente. É preciso revisitar os mestres, compreender o
contexto, a intenção por trás da nota. A grandeza de um coro, de um regente,
reside na capacidade de honrar essa tradição, de fazer com que a música do
passado ilumine o presente.
Outra lição de Magnani que carrego comigo é a definição de músico em sua forma mais pura e exigente:
Ser músico é dominar a linguagem musical. Quem passa o ano inteiro estudando três obras não é músico.
Aqui, o mestre nos oferece uma crítica à superficialidade e
à vaidade que, por vezes, se infiltram no meio artístico. O domínio da
linguagem - a gramática, a sintaxe, a retórica da música - é o que nos permite
ir além da mera execução. É o que transforma o instrumentista em intérprete, o
regente em comunicador.
A música, assim como a polifonia que tanto amo, exige
coerência e profundidade. Não basta o brilho externo; é preciso a luz interna
do conhecimento.
Essa busca pela essência o levou a uma situação que revela a
ironia do sistema acadêmico:
Sou autor do único livro de musicologia de um certo peso no Brasil, mas sou impedido de ensinar por falta de titulação.
O livro em questão, Expressão e Comunicação na Linguagem da
Música 1, é um marco. O fato de o autor de uma obra tão fundamental ser barrado
pela burocracia da titulação é um lembrete de que a erudição e o domínio nem
sempre andam de mãos dadas com os diplomas. A verdadeira autoridade reside na
obra e no legado, não no papel.
A trajetória de Magnani, que iniciou seus estudos de piano aos quatro anos e, depois de combater pela Itália durante a 2ª Guerra Mundial, transferiu-se para o Brasil em 1950, é um testemunho de resiliência e humanidade. Sua reflexão sobre a guerra é um dos momentos mais tocantes:
A guerra foi o único período da vida em que vi os homens como eles são de fato. Sem hipocrisia, porque na guerra hipocrisia não adianta. [...] E vêm à tona muitas coisas boas. O melhor da humanidade, episódios de fraternidade, de compreensão e colaboração humana que eu vi durante a guerra, não vi em outros períodos da minha vida.
Essa experiência de vida, onde a simplicidade e a
fraternidade se impõem diante da tragédia, moldou sua arte. A música de
Magnani, e o trabalho que ele iniciou, como a fundação do Ars Nova - Coral da
UFMG em 1959, carregam essa marca: a busca pela verdade e pela comunicação
essencial, sem adornos desnecessários.
Ele trouxe para o Brasil a disciplina e a profundidade da
tradição europeia, mas a aplicou com a humanidade e a fraternidade que aprendeu
nos momentos mais duros da vida.
Sergio Magnani não foi apenas um maestro, arranjador, compositor e pesquisador. Ele foi um educador que nos ensinou que a arte é um ato de coerência entre o que se sabe, o que se sente e o que se faz.
O seu legado, que hoje se manifesta na Sala Sergio Magnani
da Fundação de Educação Artística e na perenidade do Ars Nova,[3] é um convite
constante à escuta atenta e à presença.
"Alô, Magnani" é o som da tradição que nos chama,
nos lembra que a grandeza está na memória e que o domínio da linguagem musical
é o caminho para a iluminação que a música nos oferece. E essa linha direta,
felizmente, nunca cai.
🎬 A pouco tempo, encontrei essa preciosidade que merece ser assistida: Entrevista do Maestro Sergio Magnani para o Canal 25
Referências:
[1) Assim Magnani atendia ao telefone.
[2] Magnani, Sergio. Expressão e Comunicação na Linguagem da Música. Editora UFMGG, 1989.
[3] Magnani criou o coro da União Estadual dos Estudantes, em Belo Horizonte. Anos mais tarde, passaria a regência a Carlos Alberto Pinto Fonseca. Ao ser assumido pela UFMG, o coro passou a se chamar Ars Nova - Coral da UFMG.
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