Entre as muitas memórias que o ano de 2020 me legou, e que ainda insistem em habitar minhas escutas e reflexões, estão os vídeos virtuais. Essas produções, que surgiram como pequenas colchas de retalhos sonoros, foram a tentativa mais honesta e corajosa de costurar presença no meio da distância imposta pelo isolamento.
Cantamos muito naquele ano. Fomos forçados a voltar a peças antigas, a descobrir detalhes que nunca havíamos ouvido, a estreitar repertórios. Foi um processo de reinvenção enquanto grupo, enquanto músicos e, talvez, enquanto gente. O isolamento nos obrigou a revisitar a própria definição de afinação. Aprendemos que a precisão técnica é importante, pois a coerência sonora é o mínimo que se espera de um grupo coral, mas a afinação, naquele contexto, não era tudo.
A experiência era, em si, um paradoxo. Cada músico gravando do seu canto, cada respiração lutando contra o delay da tecnologia, cada olhar buscando um outro olhar que, fisicamente, não estava ali. E, no entanto, a música, com sua força inabalável, acontecia. Um desses momentos, que guardo com especial carinho, foi a produção do nosso "Desafinado" com o Madrigale Virtual. O arranjo para vozes femininas de Hely Drummond sobre o clássico de Tom Jobim e Newton Mendonça ganhou, naquele setembro de 2020, uma nova camada de significado.
O "Desafinado" é, por natureza, uma obra de ironia
terna. É um samba moderno que fala sobre a imperfeição, sobre a falha humana
que, no fundo, é o que nos torna autênticos. E o formato virtual, com suas
limitações técnicas e sua exposição crua e charmosa da individualidade, revelou uma
delicadeza que o palco, por vezes, esconde.
O verdadeiro aprendizado estava na generosidade e na paciência. O vídeo virtual era um exercício de coragem, pois expunha a vulnerabilidade de cada voz, a luta contra o silêncio do mundo. No fundo, como diz o texto original que acompanhou o vídeo, a mensagem era mais profunda: "afinados ou desafinados, temos todos um coração." E era essa pulsação, a pulsação humana por trás do som, a intenção de não deixar a voz silenciar, que realmente aparecia na tela. O som era um veículo, mas o significado era a conexão.
Olhando agora, com a distância que só o tempo pode oferecer,
percebo que cada vídeo virtual é uma prova irrefutável de que a música sempre
encontra uma fresta para entrar. A arte verdadeira não se dobra às
circunstâncias; ela se adapta, se transforma e insiste em cumprir sua missão
essencial: iluminar e unir.
O Madrigale Virtual e o nosso "Desafinado" não
foram apenas um registro da pandemia. Foram um testemunho de que, mesmo quando
estamos separados, ou, talvez, justamente por isso a música insiste em nos
juntar, reafirmando que a presença mais importante é aquela que se estabelece
na escuta mútua e na intenção compartilhada. A música, em sua essência, é a
nossa linha direta com a humanidade.
🎬 HELYELAS
- Desafinado (Tom Jobim e Newton Mendonça)
Como foi difícil gravar este coro virtual! Um verdadeiro desafio para gravar o Desafinado, mas o resultado, tanto vocal quanto visual, ficou muito lindo.
ResponderExcluirÉramos nós ousando na sequência de vídeos, né? Quanta diferença do primeiro para esse. E quanto ainda exploramos até o fim dos virtuais. Um tempo para não esquecermos.
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