segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Sacro X Profano - duas portas para o mesmo silêncio

Houve um tempo, não tão distante, em que os coros estruturavam seus concertos em duas partes bem definidas: primeiro o sacro, depois o profano (ou, como depois se disse, o “popular”). Era quase um ritual: duas metades do mesmo corpo, como se a música precisasse afirmar que também tinha suas fronteiras.

Com o passar dos anos, essas fronteiras foram se dissolvendo. Hoje, canta-se música coral, simplesmente, sem necessidade de separar o que é de igreja do que é de palco, o que vem do templo do que vem da rua. Essa liberdade ampliou horizontes, permitiu misturas, abriu caminho para repertórios mais diversos e menos engessados. Eu mesmo fui um defensor dessa mistura por muito tempo.

Acreditava, e ainda acredito, que a arte cresce quando derruba muros. Mas há algo que o tempo nos ensina com delicadeza: a ausência prolongada do sacro traz uma falta estranha, quase um vazio na maneira de interpretar e compreender a música. Há na música sacra uma vibração que não se repete em nenhum outro gênero. Termos como amor, êxtase, gozo, paixão, desespero, esperança, sofrimento, tão comuns na música popular, assumem aqui outra profundidade. Eles deixam de ser apenas emoções humanas para se tornarem estados de espírito, sintomas de algo que não cabe na linguagem comum.

E é justamente na música coral, onde a palavra é corpo, sentido e ressonância, que essa diferença se revela com nitidez. Não é um detalhe: é uma mudança de perspectiva. Quando canta, o coro não apenas diz o texto. Ele encarna o texto (verbo). É a isso que chamamos de verbalização, o encontro entre som e palavra, entre intenção e respiração, entre o que a boca dita e o que a alma compreende. Por isso, o prólogo de São João, “No princípio era o Verbo”, ganha outra dimensão no canto. O Verbo que se fez carne é o mesmo que, no momento do canto, se faz voz.

Onde cantar o sagrado? No nosso tempo, cantar música sacra em teatro gera estranhamento. “Isso é para igreja”, dizem alguns. Mas basta ouvir um Kyrie, um Agnus, um Magnificat, ou mesmo um simples Amen para perceber: a música sacra não pertence a um endereço. Pertence ao mistério. E o mistério, esse território sem chão, cabe em qualquer lugar onde haja silêncio, escuta e disponibilidade.

A música sacra não é definida pela arquitetura ao redor, mas pelo movimento interior que ela provoca. Ela não pede aprovação: ela acontece. Convoca. Suspende. Transfigura. São universos diferentes, sim, o sacro e o profano, mas não como opostos. São duas maneiras de olhar para a mesma luz: uma pela janela do céu, outra pela janela da terra. E, de algum modo, ambas nos devolvem ao mesmo ponto: ao mistério. Àquilo que não se explica, apenas se canta.

Amém.



Palestrina - Gloria

 

Edifício de tijolos

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