domingo, 30 de novembro de 2025

D. Pedro de Cristo - uma essência da polifonia portuguesa

Se O Magnum Mysterium nos encanta pela simplicidade luminosa, seu autor, D. Pedro de Cristo (1545/1550-1618), é uma das figuras mais importantes da polifonia portuguesa dos séculos XVI e XVII.

Nascido em Coimbra, ele ingressou em 1571 no Mosteiro de Santa Cruz, onde estudou com Francisco de Santa Maria, então mestre de capela. Pedro de Cristo não apenas sucedeu seu mestre no cargo, como mais tarde ocupou também a função de mestre de capela no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, uma das instituições musicais mais prestigiadas do país na época. Ao longo da vida, alternou sua atuação entre esses dois centros, retornando a Santa Cruz em 1605 e voltando novamente a São Vicente em 1615. Morreu em Coimbra, em 1618, em consequência de uma queda.

Grande parte de sua produção inclui motetos (peças curtas sobre textos litúrgicos), vilancicos (canções sacras ou devocionais com sabor popular, muitas vezes festivas) e responsórios (peças para a liturgia das horas, geralmente em alternância entre solistas e coro). Poucas missas completas sobreviveram: apenas uma íntegra, uma missa ferial e um Gloria isolado.

D. Pedro de Cristo compõe dentro da tradição renascentista, mas sua escrita tem algo muito próprio: uma clareza portuguesa, uma contenção que não empobrece, mas ilumina. Não há excessos, nem ornamentos desnecessários. A palavra é sempre o centro. O som nasce do texto e se organiza ao serviço dele.

Ao ouvir sua música, percebo uma autoria que não busca grandiosidade externa, mas profundidade interna, um tipo de espiritualidade sonora que atravessa séculos sem perder força. É música que não depende de artifícios; depende de intenção, de escuta, de coerência entre a voz e o significado. Sua produção, ainda pouco conhecida no Brasil, merece ser mais cantada, estudada e celebrada. É patrimônio vivo, e, sempre que interpretada, reacende uma tradição que ecoa séculos e continua a dizer muito sobre nós, sobre a música que queremos fazer e sobre o silêncio que ainda precisamos aprender a ouvir.

 

🎧 D. Pedro de Cristo "Ai mi Dios que causa ha sido"

 

Foto em preto e branco de mulher com os braços para cima

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sábado, 29 de novembro de 2025

Um (O) Magnum Mysterium em Lisboa

Recentemente, visitei o Coro da Universidade Nova de Lisboa, dirigido pelo maestro Diogo Gonçalves. Fui recebido com muita consideração e simpatia, tanto pelos cantores quanto pelo maestro, uma acolhida que me deixou verdadeiramente agradecido.

Logo no início do ensaio, tive uma surpresa especial: o coro cantou O Magnum Mysterium, de D. Pedro de Cristo. Conheço a peça há bastante tempo e já a cantei tanto no Madrigal Scala quanto no Coro Madrigale. Ouvi-la novamente, ali, naquele contexto, trouxe uma sensação boa de reconhecimento, quase como revisitar um espaço interno que a música guarda para nós.

Essa experiência despertou o desejo de escrever sobre a obra, não apenas pela beleza que ela carrega, mas pelo lugar que ocupa na tradição coral portuguesa e nas minhas próprias memórias musicais.

 

O Magnum Mysterium é um moteto natalino que celebra o “grande mistério” da encarnação. Sua força não está em efeitos grandiosos, mas na simplicidade: linhas vocais transparentes, fraseado claro e uma construção polifônica que valoriza a palavra antes de qualquer ornamento.

O que mais me impressiona nessa peça é a naturalidade. Nada parece excessivo. Nada parece buscar brilho pelo brilho. É uma música que se apoia na precisão e no recolhimento. Cantar essa obra pede intenção, escuta e respeito ao texto, não apenas pela dimensão religiosa, mas pelo modo como a música cria um espaço interno de quietude. É uma peça que não se impõe; ela se revela. E talvez seja justamente isso que a torna tão marcante: ela nos lembra que o canto coral é feito de presença, atenção e equilíbrio. É música que não quer impressionar, quer iluminar.

A interpretação do Coro da Nova foi exatamente assim para mim: tocante e bela. Um presente.

No próximo post, falo sobre o compositor que deu vida a esta obra e sobre o lugar que ele ocupa na tradição coral portuguesa.


🎧 O Magnum Mysterium | D. Pedro de Cristo 




Texto e tradução

Texto latino

O magnum mysterium,

et admirabile sacramentum,

ut animalia viderent Dominum natum,

jacentem in praesepio.

Beata Virgo cujus viscera

meruerunt portare

Dominum Iesum Christum.

Alleluia.

 

Tradução livre

Ó grande mistério

e admirável sacramento,

que os animais tenham visto o Senhor recém-nascido,

deitado na manjedoura.

Bem-aventurada a Virgem, cujas entranhas

mereceram trazer ao mundo

o Senhor Jesus Cristo.

Aleluia.

 


 

 

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

California Dreamin' (Madrigale Internacional)

No concerto de músicas internacionais que o Madrigale apresentou em junho de 2025, uma das peças de que mais gostei de trabalhar foi California Dreamin’, de John Phillips e Michelle Phillips, imortalizada pelo grupo The Mamas and the Papas.

Diferente das versões rápidas, solares e cheias daquela pulsação folk tão característica dos anos 60, o arranjo escolhido, de Mac Huff, seguia outro caminho. Era mais lento, mais contemplativo, quase cinematográfico. Um pôr do sol em acordes.

O piano, contínuo e presente o tempo todo e tão bem tocado pelo Júlio Bastos, funcionava quase como uma segunda voz. Ele criava o solo onde o coro pisava: a estrada, o vento, o clima da costa oeste que ninguém ali tinha visto, mas que todos conseguimos imaginar imediatamente. Sobre essa base, as vozes entravam com calma, como quem abre uma carta antiga.

O que mais me chama a atenção nesse arranjo é a maneira como Huff transforma a nostalgia em ambiente. A música deixa de ser apenas um sonho de viagem para se tornar uma espécie de estado interno. É, de certa forma, um convite para diminuir o passo.

Quando o último acorde se apagou no palco, tive a sensação clara de que a Califórnia mencionada no título não era mais um lugar no mapa. Era um ponto de partida simbólico, uma memória possível, um lugar de pertencimento que cada um de nós encontrou à sua maneira. E foi nesse momento que percebi que, às vezes, uma canção americana dos anos 60 ganha nova vida na boca de um coro e passa a falar sobre outra coisa. Sobre nós. Sobre nossas saudades e afetos. Sobre os invernos que atravessamos e as pequenas primaveras que insistem em nascer.


🎧 (47) Madrigale Pop Internacional – 05. California Dreamin - YouTube




 


quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Corais no Campus: o coração pulsante do Núcleo de Música Coral da UFMG

Se o Núcleo de Música Coral é uma constelação, o Corais no Campus é o seu coração pulsante. Criado em 1992 e formalmente integrado ao NMC desde 1998, esse projeto tornou-se uma das maiores ações extensionistas da UFMG e, sem exagero, um dos mais potentes movimentos de canto coral universitário do Brasil.

Hoje, o Corais no Campus acompanha 14 coros ativos, cada um com sua personalidade, sua história e a comunidade que o sustenta. Eles formam uma rede afetiva e artística que atravessa a universidade de ponta a ponta:

  • Coral da Engenharia
  • Coral da FALE
  • Coral Cantáridas (ICB)
  • Corais PRC 1 e PRC 2 (disciplina da Escola de Música)
  • Coro FioCantos de Minas
  • Coro de Câmara da Escola de Música
  • Campus em Canto
  • Litterarum Coral
  • Coral da Faculdade de Medicina
  • Coralitos (CMI)
  • Coral Música para Todos (CMI)
  • Ars Nova – Coral da UFMG
  • Coral de Trombones da EMUFMG
  • Grupo de Saxofones da EMUFMG
  • Madrigal Renascentista

(Sim, são 14 coros centrais, mais grupos instrumentais que integram ações, apresentações e projetos especiais do NMC.)

Esses grupos mobilizam centenas de pessoas: estudantes, servidores, egressos, moradores de Belo Horizonte, profissionais de saúde, pesquisadores, crianças, jovens e adultos de todas as áreas do conhecimento. Uma comunidade plural que respira música, encontro e criação coletiva. E tudo isso pulsa semanalmente em ensaios, oficinas, aulas de técnica vocal, musicalização, expressão corporal e preparação cênica, sempre com o apoio de bolsistas que sustentam a base metodológica do projeto: regentes, pianistas, preparadores vocais, produtores culturais, educadores musicais.

O Projeto Corais no Campus promove o desenvolvimento técnico e artístico dos participantes; a convivência e acolhimento numa universidade que, sozinha, pode ser imensa; experiências vocais, corporais e cênicas inovadoras; ações extensionistas que aproximam universidade e sociedade; grandes projetos artísticos que mobilizam toda a rede, como as cantatas cênicas Carmina Burana (2016) e Catulli Carmina (2018).

Durante a pandemia, o projeto não apenas resistiu, reinventou-se: coros virtuais, ensaios remotos, vídeos colabora­tivos, formações on-line. A rede seguiu viva quando o mundo parecia suspenso. Hoje, com as atividades presenciais retomadas, o NMC se consolida como uma das maiores estruturas de prática coral universitária do país, atuando não apenas como projeto artístico, mas como política cultural, educação estética, espaço de saúde, convivência e expressão coletiva. Porque dentro do Corais no Campus, cantar juntos é mais que fazer música: é aprender a olhar o outro, escutar o outro e escutar a si mesmo.

  



Coral Vozes da Saúde

Fiocantos de Minas

Coral da FALE

Cantáridas

Grupo de Saxofones da EMUFMG


quarta-feira, 26 de novembro de 2025

O Núcleo de Música Coral da UFMG - uma instituição e muito além

A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) é uma das melhores universidades públicas do Brasil, reconhecida por sua excelência em ensino, pesquisa e extensão. É um lugar onde o saber se alia à cidadania, onde as artes, as ciências e a humanidades se encontram para formar não apenas profissionais, mas pessoas capazes de transformar o mundo.

E dentro desse universo de ideias, de possibilidades e de encontros, o Núcleo de Música Coral da UFMG (NMC) ergue-se como um destes espaços que não se medem por paredes ou quadros-horários, mas por vozes, repertórios, afetos e encontros. Ele é um território onde a arte se faz elo, onde estudantes e comunidade se encontram para respirar música, aprender juntos e transformar o campus em espaço vivo de cultura e sensibilidade.

Criado em 1998, o NMC nasceu com a vocação de tornar o canto coral uma experiência acessível, interdisciplinar e profundamente humana. Hoje, ele reúne 14 coros ativos, espalhados por várias unidades da UFMG, envolvendo alunos, servidores e público externo em práticas artísticas que vão muito além da técnica musical.

Ali, o canto é ferramenta de expressão, convivência e formação. Vozes que talvez nunca se encontrassem passam a compartilhar repertórios, histórias, risos, desafios e palcos. O NMC se tornou ponto de encontro entre áreas do saber, conectando Música, Teatro, Letras, Medicina, Engenharia, Biológicas, Educação e tantas outras áreas que encontram, no canto coletivo, um lugar de pertencimento e criação.

O Núcleo também é um espaço de formação profissional: bolsistas de regência, canto, piano, produção cultural, musicalização e expressão corporal se dedicam a uma rotina que os aproxima da vida real da música, planejando repertórios, conduzindo ensaios, organizando concertos, recebendo plateias variadas e aprendendo a transformar ideias em projetos. E tudo isso se estende para além dos muros da universidade. Concertos em igrejas, praças, escolas, hospitais, eventos culturais e até em unidades de saúde mostram a força do canto como gesto social e estético.

O NMC é, enfim, um organismo vivo. Um conjunto de vozes que cresce, se renova e vibra junto, e que segue lembrando à UFMG que a música não é apenas uma linguagem artística, mas uma forma de criar mundos.

 

No próximo post, vou contar como esse Núcleo se organiza, quais coros o compõem e como ele se tornou um dos maiores projetos de prática coral em universidades brasileiras.

 





Catulli Carmina 


terça-feira, 25 de novembro de 2025

Ride On, King Jesus (Madrigale virtual)

Entre todos os repertórios que acompanharam o Madrigale ao longo dos anos, os spirituals ocupam um lugar muito especial. Eles chegaram cedo ao nosso grupo, quase como quem bate à porta trazendo um recado antigo e ficaram. E foi por meio deles que muitas pessoas passaram a nos seguir, a nos ouvir e, de algum modo, a fazer parte da nossa história.

Os spirituals carregam consigo algo que nenhuma outra música possui: uma memória que não é apenas sonora, mas humana. São canções nascidas da dor e da esperança, da fé e da resistência, da vida que se insiste em cantar mesmo quando tudo à sua volta tenta silenciá-la. Cantar spirituals é entrar em contato com uma linhagem de vozes que atravessou séculos e que ainda ecoa em nós. 

Em setembro de 2020, no auge da pandemia, decidimos revisitar uma dessas peças que sempre mexeram com o nosso coração coletivo: “Ride On, King Jesus”, em arranjo magistral de Moses Hogan. Um spiritual que, por si só, já carrega a força de uma marcha, não a marcha dos pés, mas a marcha da alma.

A versão virtual contou com o solo sensível e poderoso de Indaiara Patrocínio, e com o piano firme e expressivo de Hely Drummond. Cada cantor gravou de casa, separado, enfrentando seus próprios silêncios, suas próprias travessias. Mas, quando as vozes finalmente se encontraram na edição, algo aconteceu: foi como se o espírito original da obra nos chamasse pelo nome. 

Ride on fala de perseverança, de uma fé que não  desiste, de um caminho que continua mesmo diante da noite mais escura. E, naquele 2020, era exatamente disso que todos precisávamos: uma música que dissesse, com todas as letras, e com toda a alma, continue. Siga. Avance.

Nos spirituals, cada repetição é uma oração. Cada crescendo, uma afirmação. Cada silêncio, uma ferida que ainda respira. E é por isso que arranjos de Moses Hogan sempre nos comovem tanto: eles respeitam a raiz, mas a expandem; honram a dor, mas a transfiguram em beleza coral.

Cantar esse vídeo foi lembrar que a música é, muitas vezes, o caminho que fazemos para dentro de nós mesmos. E que, mesmo separados, ainda podíamos caminhar juntos. Que Ride On, King Jesus continue ecoando como uma marcha de luz. E que nunca nos falte essa força ancestral que diz, com simplicidade e grandeza: não pare. Siga. A travessia continua.

 

🎧 Ride On, King Jesus - Coro Madrigale - YouTube



segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Sacro X Profano - duas portas para o mesmo silêncio

Houve um tempo, não tão distante, em que os coros estruturavam seus concertos em duas partes bem definidas: primeiro o sacro, depois o profano (ou, como depois se disse, o “popular”). Era quase um ritual: duas metades do mesmo corpo, como se a música precisasse afirmar que também tinha suas fronteiras.

Com o passar dos anos, essas fronteiras foram se dissolvendo. Hoje, canta-se música coral, simplesmente, sem necessidade de separar o que é de igreja do que é de palco, o que vem do templo do que vem da rua. Essa liberdade ampliou horizontes, permitiu misturas, abriu caminho para repertórios mais diversos e menos engessados. Eu mesmo fui um defensor dessa mistura por muito tempo.

Acreditava, e ainda acredito, que a arte cresce quando derruba muros. Mas há algo que o tempo nos ensina com delicadeza: a ausência prolongada do sacro traz uma falta estranha, quase um vazio na maneira de interpretar e compreender a música. Há na música sacra uma vibração que não se repete em nenhum outro gênero. Termos como amor, êxtase, gozo, paixão, desespero, esperança, sofrimento, tão comuns na música popular, assumem aqui outra profundidade. Eles deixam de ser apenas emoções humanas para se tornarem estados de espírito, sintomas de algo que não cabe na linguagem comum.

E é justamente na música coral, onde a palavra é corpo, sentido e ressonância, que essa diferença se revela com nitidez. Não é um detalhe: é uma mudança de perspectiva. Quando canta, o coro não apenas diz o texto. Ele encarna o texto (verbo). É a isso que chamamos de verbalização, o encontro entre som e palavra, entre intenção e respiração, entre o que a boca dita e o que a alma compreende. Por isso, o prólogo de São João, “No princípio era o Verbo”, ganha outra dimensão no canto. O Verbo que se fez carne é o mesmo que, no momento do canto, se faz voz.

Onde cantar o sagrado? No nosso tempo, cantar música sacra em teatro gera estranhamento. “Isso é para igreja”, dizem alguns. Mas basta ouvir um Kyrie, um Agnus, um Magnificat, ou mesmo um simples Amen para perceber: a música sacra não pertence a um endereço. Pertence ao mistério. E o mistério, esse território sem chão, cabe em qualquer lugar onde haja silêncio, escuta e disponibilidade.

A música sacra não é definida pela arquitetura ao redor, mas pelo movimento interior que ela provoca. Ela não pede aprovação: ela acontece. Convoca. Suspende. Transfigura. São universos diferentes, sim, o sacro e o profano, mas não como opostos. São duas maneiras de olhar para a mesma luz: uma pela janela do céu, outra pela janela da terra. E, de algum modo, ambas nos devolvem ao mesmo ponto: ao mistério. Àquilo que não se explica, apenas se canta.

Amém.



Palestrina - Gloria

 

Edifício de tijolos

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domingo, 23 de novembro de 2025

Ave Maria de Biebl - quando a distância se transforma em oração

Em agosto de 2020, ainda em plena pandemia, voltamos a cantar, cada um de sua casa, separados pelo espaço, mas unidos pela memória dos palcos e pela fé que sempre nos moveu. Naquele momento de muitas incertezas e estresses acumulados de alguns meses, escolhemos a Ave Maria de Franz Xaver Biebl, uma das mais belas obras do repertório coral do século XX.

Composta em 1964, a peça foi escrita originalmente para coro masculino, e foi exatamente com as vozes masculinas do Madrigale que a recriamos em sua versão virtual. O texto combina o Angelus e a Ave Maria, alternando solo e coro em uma estrutura de diálogo, como se a própria oração se fizesse conversa entre o humano e o divino.

Cantá-la virtualmente foi um gesto de resistência e de ternura. Cada voz gravada em casa tornava-se um fragmento de presença, pequenas luzes que, reunidas na montagem final, recriavam o coro e devolviam o sentido de comunidade. Era o tempo em que a música nos permitia continuar respirando juntos, ainda que separados.

A data não poderia ser mais simbólica: 15 de agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora e também de Nossa Senhora da Boa Viagem, padroeira de Belo Horizonte. Naquele mesmo templo que tantas vezes nos acolheu, havíamos cantado, no ano anterior, um concerto inteiro de Ave Marias, celebrando a restauração do altar. Desta vez, a igreja estava vazia, mas o canto, mesmo distante, parecia preencher o espaço.

Foi ali, no meio da solidão das telas, que percebi que a pandemia nos afastou dos ensaios, mas não da escuta. E talvez seja essa a maior lição que essa peça nos deixou: que a distância pode ser apenas mais uma forma de presença, e que a música, mesmo quando separada por quilômetros, continua sendo oração.

 

🎧 Ave Maria, Biebl - Coro Madrigale

 

Interface gráfica do usuário, Site

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 Produção virtual do Coro Madrigale (vozes masculinas), agosto de 2020 , em homenagem à Assunção de Nossa Senhora e à padroeira de Belo Horizonte, Nossa Senhora da Boa Viagem.

  

sábado, 22 de novembro de 2025

O Coral Dom Silvério (3) - a casa onde aprendemos a crescer

Com o passar dos anos, quando já me encontrava diante do coro como jovem regente, percebi que algo silencioso acontecia ali dentro. O Coral Dom Silvério não era mais apenas a instituição que me formara, ele começava, pouco a pouco, a ser transformado por nós, aqueles mesmos meninos que haviam chegado tímidos, sopranos e contraltos, sem imaginar o destino que nos aguardava.

Éramos adolescentes assumindo responsabilidades de adultos, mas com a leveza e a coragem de quem acredita profundamente no outro. E foi essa confiança mútua que permitiu que eu modificasse, aos poucos, a estrutura do coro. Começamos a experimentar novos repertórios, buscar um refinamento vocal maior, trabalhar nuances, afinação, fraseado, tudo aquilo que, até então, parecia reservado a coros mais experientes.

Mas nós acreditávamos. Acreditávamos uns nos outros. Éramos atrevidos demais!!! E esse é um dos maiores segredos de qualquer grupo artístico: não é a idade que define a maturidade musical, mas a entrega. 

Os mais velhos, crescemos juntos e tratávamos os mais novos como irmãos menores. Havia um cuidado silencioso, quase ritual: ajudá-los com as entradas, apoiá-los nos ensaios, ensiná-los a escutar, mostrar como se portar, e lembrá-los, sempre, de que eram parte de um corpo maior. Eles nos olhavam com admiração, e nós sabíamos disso. Carregávamos essa responsabilidade com orgulho e com uma alegria meio ingênua, mas muito verdadeira.

Aquele "Coral" era mais que um coro: era uma pequena comunidade afetiva, onde cada gesto moldava o caráter de todos nós. Era uma escola de humanidade. Os ensaios, as conversas, as risadas no intervalo, a disciplina, o cuidado com a pasta, o silêncio na hora certa, tudo era aprendizado. Vivemos juntos até os meus 20 anos. Foi quando minhas ideias sobre o que o coro poderia ser, e se tornar, começaram a divergir das do maestro titular. Não houve conflito aberto, apenas uma incompatibilidade que cresceu quieta, como uma fissura fina entre duas paredes que já não se encaixam. E aí chegou a hora de sair...

Sair dói, mesmo quando é necessário. Lembro-me de sentir o coração apertado ao me afastar daquele grupo que tinha sido meu mundo desde os treze anos. Mas a música é feita de ciclos, e eu já precisava seguir para outros caminhos.

O que ficou? As ideias!!! Aquelas que nasceram ali, na convivência com meus companheiros, na confiança construída, nos repertórios que ousamos tentar. Todas elas ficaram comigo. Foram sementes que carreguei para outros coros, para outros palcos, para a vida inteira.

Hoje, quando penso no Coral Dom Silvério, vejo um menino descobrindo a própria voz, um adolescente descobrindo a regência e um jovem descobrindo que o canto coral é, acima de tudo, um modo de estar no mundo. E assim, o que vivi ali não terminou quando deixei a sede do coro. Pelo contrário: foi ali que tudo começou a durar...


P.S. Para aqueles antigos que virem essa foto abaixo... ESSA TURMA, ESSE CORO, ERA MUITO BOM!!!

 

Grupo de pessoas em pé

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Em cima: Fabiano, Nivaldo, Zé Ronaldo, Geraldo, Éder, Marcelo, Cleber José, Warley, Cleber de Castro, Moreno, Geraldo, Sérgio, Jacson

Meio: Rogério, Wagner, Ronilton, Eduardo, Goiaba, Andinho, Robert, Evaldo, Fernando, Ricardo, Anderson, Carlos Saúva, Paulo Henrique, Adelmo

Embaixo: Wagner, Ricardinho, Jeferson, Pablo, Rilton, Ivisson, Ismar, Robert, Russifrank, Cláudio (Batuta), Carlitinho

 

 

 

 

 

 

 

 


sexta-feira, 21 de novembro de 2025

O Coral Dom Silvério (2) - onde a minha voz mudou, e eu mudei com ela



Quando completei 16 anos, minha voz finalmente mudou. Eu aguardava esse momento! Queria viver o rito de passagem que todo menino cantor imagina: cantar entre os naipes masculinos, compartilhar aquele som mais encorpado, vibrar no grave que sempre admirei. 
Mas o destino tinha outros planos. Não tive sequer tempo de experimentar aquela sensação de ser “um dos homens do coro”, e antes que eu percebesse, o maestro João Lucas me apontou outro caminho: colocou-me à frente do grupo. E de lá, eu não saí mais.

Foi assim, sem aviso e sem cerimônia, que comecei a reger coros. Um adolescente magro, cabeludo, ainda inseguro, agora tinha diante de si não apenas um coro, mas um espelho onde se revelavam responsabilidade, escuta, maturidade e uma forma muito própria de liderança que só a música exige. Para além de fazer música, eu passava a ser o responsável pelos meus amigos cantores.

Eu não tinha consciência disso, mas aquele gesto do maestro mudaria minha vida inteira e para entender o peso desse momento, é preciso compreender o que o Coral Dom Silvério significava em Sete Lagoas, e, de certa forma, ainda significa para tantos jovens.

O Coral Dom Silvério não é apenas um coral de meninos: é uma instituição musical, uma casa formadora, um espaço onde disciplina e afeto caminham lado a lado. Fundado em 1963, o coral se tornou referência na cidade. Ali, meninos e adolescentes aprendem técnica vocal; leitura musical; instrumentos e teoria; além de postura, responsabilidade, trabalho coletivo  e o sentido profundo de cantar junto. É música como estrutura de vida. Música como rotina. Música como educação.

A sede do coral, grande, acolhedora e repleta de sons, vibra, ainda, todos os dias com ensaios, conversas, jogos e risadas e aquela espécie de energia que só existe quando a juventude encontra um propósito. É algo que, hoje, reconheço como raro: um ambiente onde arte e humanidade se confundem, onde a formação musical é, ao mesmo tempo, formação de caráter. Foi ali que descobri o prazer de estudar uma partitura como quem decifra um segredo, a ética do ensaio, o respeito ao silêncio, a alegria de crescer entre iguais, e o peso suave da responsabilidade quando alguém confia em você.

Quando assumi a frente do coro pela primeira vez, senti um medo tremendo. Eu tremia inteiro. Mas havia ali um encantamento estranho, como se eu finalmente ocupasse um lugar que sempre me esperou, mesmo sem eu saber. O Coral Dom Silvério foi meu primeiro palco e minha primeira escola de humanidade. Foi onde aprendi a ouvir antes de falar, a orientar antes de impor, a conduzir antes de dominar. E nesse gesto, simples, quase silencioso, comecei a trilhar o caminho que me acompanha até hoje.

 

Grupo de pessoas lado a lado

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Última fila: Nivaldo, Adelmo, Sidnei, Cleber, Moreno, Jacson, Arnon, Geraldo, Roni, Zé Ronaldo

Fila do meio: Marcelo, Paulo Henrique, Badin, Warley, Fernando, Carlos, Warley, Eduardo, Carlos, Ronilton, Russifrank

Embaixo: Éder, Ricardo, Cláudio (Batuta), Ismar, Ivisson, William, Andinho

 

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O Coral Dom Silvério (1) - onde a minha voz começou

Vou contar pra vocês uma história. Daquelas que começam lembrando que há lugares onde a vida muda de direção sem que a gente perceba. A história é do meu começo na música, e esse lugar foi o Coral Dom Silvério, em Sete Lagoas, onde entrei e me tornei um menino cantor aos treze anos, levado por um primo que já fazia parte do grupo.

Eu e meu irmão mais novo, Marcelo, cheios de timidez e curiosidade, fomos apresentados ao maestro João Lucas Rodrigues para o teste vocal que decidiria nossos caminhos. Lembro-me daquele instante com uma nitidez que o tempo não apagou: João Lucas pediu que cantássemos algumas melodias e, ali mesmo, definiu...eu seria soprano; Marcelo, contralto.

E assim foi por anos inteiros: duas vozes juvenis descobrindo a disciplina do canto coral, respirando juntas, aprendendo a ouvir antes de cantar.

Mas o Coral Dom Silvério não me deu apenas a voz; deu-me também um instrumento que eu nem sabia que procurava. Eu queria estudar flauta, pois era o instrumento que eu conhecera e adorava. Mas, num daqueles acasos que mudam destinos, colocaram-me diante de um piano para um pequeno teste. Eu nunca tinha visto um piano de perto. E bastou tocar uma única nota para algo acontecer dentro de mim. Até hoje não sei explicar. Foi como se o instrumento me chamasse pelo nome. Ali nasceu o pianista. E, sem que eu percebesse, ali também nasceu o regente.

Com o tempo, tornei-me solista do coro. Entreguei-me à tarefa de copista, copiando partituras à mão para serem reproduzidas em mimeógrafo, e também à organização do arquivo do coral. Hoje vejo com clareza: tudo aquilo estava apontando para o que eu faria depois na vida: ser intérprete, ser guardião de acervos, ser copista de centenas de músicas, ser alguém que organiza e dá forma ao que outros vão cantar.

Era um mergulho silencioso e minucioso, que me ensinou tanto sobre música quanto sobre responsabilidade, memória e cuidado.

O Coral Dom Silvério foi, para mim, uma grande escola de vida. Ali fiz amizades que moldaram minha adolescência, tive uma formação humana que me acompanharia para sempre e vivi a rotina intensa de um grupo que respirava música com seriedade e afeto.

Hoje, ao revisitar essas lembranças, compreendo: foi naquele coro que comecei a me escutar, e, mais que isso, a escutar o mundo. O menino soprano que entrou em 1980 não tinha ideia de que estava ali colocando o primeiro tijolo de uma trajetória inteira dedicada ao canto coral. E talvez seja por isso que escrever sobre o Coral Dom Silvério não é apenas revisitar o passado: é reencontrar a primeira fagulha, o primeiro som, o primeiro passo.

No próximo post, continuo contando essa história, a história daquele menino que aprendia, ali, a ser músico e a ser gente.

  

Foto em preto e branco de grupo de pessoas lado a lado

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Fila de trás: Jacson, Robson, Nilson, Márcio, Cleber de Castro, Cleber José, Irineu, Rogério, Arnon, Sérgio Gaspar, Eloyno, Geraldo, César

Fila do meio: Moreno (Cláudio), Nivaldo, Ramon, Sérgio, Éder, Russifrank, Carlos, Fernando, Carlos (Saúva), Paulo Henrique, Wagner

Fila de baixo: Cássio, Marcelo, Ricardo, Alessandro, Ronilton, Mirkon, Andinho, Maicon, Max, João Lucas

 


 


 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

True Colors – as cores que nos habitam

Há músicas que não apenas soam, elas acontecem dentro de nós. Entre tantas que o Madrigale cantou em seus concertos internacionais, poucas trazem uma mensagem tão direta e humana quanto True Colors, de Cyndi Lauper e Billy Steinberg. Nessa versão coral, a canção se transforma em algo mais que uma melodia conhecida: é um espelho. Cada voz colore o ar com um tom próprio, e todas juntas formam um arco de delicadeza e verdade. Cantar True Colors é lembrar que o mais belo da arte, e da vida, está na coragem de mostrar quem se é.

Neste dia 19 de novembro, data especial em que celebro o aniversário do meu amigo-irmão Gustavo Fonseca, essa lembrança se torna ainda mais luminosa. Gustavo foi o solista desta peça na nossa série internacional, e sua interpretação permanece na memória de todos que o ouviram pela clareza da emoção, pela sensibilidade do timbre e pela entrega sincera de quem canta de dentro para fora.

Ao revisitar esse vídeo, o que se sente não é apenas nostalgia, mas gratidão. Gratidão pela música que continua a nos unir, pelas vozes que atravessam o tempo e pelas pessoas que dão sentido a cada projeto. 

True Colors fala sobre ver o outro além das aparências. E talvez seja essa a maior lição que o canto coral pode nos dar: que por trás de cada som há uma alma, e que o papel da arte é deixá-la brilhar, sem máscaras, sem artifício, com todas as suas cores verdadeiras.

Hoje, celebramos o Gustavo e seus 38 anos. E com ele celebramos também o dom de cantar a vida em tons humanos. Que cada voz continue revelando o que tem de mais belo: sua própria cor. 

  

🎧 Madrigale Pop Internacional – 11. True Colors

 

Pessoas no palco iluminado tocando instrumentos e cantando

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True Colors – tradução livre e poética

Cores Verdadeiras
Você, com os olhos tristes
Não fique desanimada, oh, eu sei
É difícil criar coragem
Num mundo cheio de pessoas
Você pode perder tudo de vista
E a escuridão que está dentro de você
Pode te fazer se sentir tão insignificante

Mas eu vejo suas cores verdadeiras brilhando por dentro
Eu vejo suas cores verdadeiras e é por isso que eu te amo
Então não tenha medo de deixá-las aparecerem
Suas cores verdadeiras
Cores verdadeiras
São lindas como um arco-íris

Me mostre um sorriso, então
Não fique infeliz, não me lembro quando
Foi a última vez que vi você sorrindo
Se esse mundo te deixa louca e você já aguentou tudo que podia
Me chame
Porque você sabe que estarei lá

E eu verei suas cores verdadeiras brilhando por dentro
Eu vejo suas cores verdadeiras e é por isso que eu te amo
Então não tenha medo de deixá-las aparecerem
Suas cores verdadeiras
Suas cores verdadeiras
São lindas como um arco-íris

(Não me lembro quando foi a última vez que vi você sorrindo)

Se esse mundo te deixa louca e você já aguentou tudo que podia
Me chame
Porque você sabe que estarei lá

E eu verei suas cores verdadeiras brilhando por dentro
Eu vejo suas cores verdadeiras e é por isso que eu te amo
Então não tenha medo de deixá-las aparecerem
Suas cores verdadeiras
Cores verdadeiras

Cores verdadeiras estão brilhando por dentro
Eu vejo suas cores verdadeiras e é por isso que eu te amo
Então não tenha medo de deixá-las aparecerem
Suas cores verdadeiras
Cores verdadeiras
São lindas como um arco-íris

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano – um Brasil que canta e que esquecemos de ouvir

É curioso como a história da música coral brasileira tem lacunas, e como algumas delas dizem mais sobre nós do que gostaríamos de admitir.

Entre tantos episódios que resgatei ao escrever sobre Lumumba, no post de ontem, uma imagem insistiu em voltar: a de Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano, grupo musical dos anos 1960 e que, de alguma forma, representa um Brasil que poucas vezes foi plenamente reconhecido.

A presença desse grupo, formado por vozes negras femininas e masculinas, é uma dessas lacunas que merecem ser revisitadas com carinho e atenção.

Fundado no início dos anos 60, Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano trazia uma formação vocal sofisticada: soprano, mezzo, contralto, dois baixos, um tenor e três barítonos. A combinação, por si só, já mostrava ambição estética, mas o que realmente impressionava era o modo como essas vozes se articulavam:

harmonias densas, fraseados cuidadosos, uma musicalidade que dialogava com os corais de igrejas afro-americanas, com a MPB nascente e com uma brasilidade que ainda estava se entendendo.

Ouvir aquele conjunto era como reconhecer espiritualidade, ritmo, melancolia, densidade harmônica, teatralidade, tudo caminhando junto, de forma orgânica, elegante, profundamente humana.

Mas a importância desse grupo vai além da música. Há um aspecto simbólico profundo: vozes negras ocupando um espaço coral, num país que raramente ofereceu a essas vozes um lugar de destaque.

Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano não eram apenas intérpretes; eram um acontecimento cultural. Cantavam como quem afirma uma identidade. E mostravam, para quem quisesse ver, e ouvir, que a mistura entre técnica refinada, arranjo vocal e tradição popular podia ser um caminho legítimo e poderoso.

É impossível não pensar, aqui, na memória de Lumumba: no orgulho de suas referências, na força política que atravessava seus gestos, na consciência racial que moldava sua forma de estar no mundo. E é belo perceber como essas histórias se encontram, mesmo que silenciosamente.

Falar desses Cantores de Ébano é, de algum modo, falar de todas as vozes que abriram caminhos para a música coral brasileira. Daqueles que cantaram à margem, daqueles que não couberam no repertório oficial, daqueles que enfrentaram a invisibilidade com beleza, afeto e excelência artística.

O grupo não durou muito tempo, mas deixou um rastro luminoso: um jeito de cantar que unia disciplina coral, ancestralidade, vocalidade popular e uma compreensão muito particular da harmonia. É um legado que, infelizmente, ainda é pouco lembrado, e por isso mesmo merece ser recuperado.

Por que revisitá-los agora? Porque a história coral não se constrói apenas com grandes obras europeias ou com instituições "de excelência". Ela se faz também desses grupos que cantaram com alma, que desafiaram padrões, que reinventaram o lugar da voz negra no Brasil.

E talvez a lição mais bonita que Nilo Amaro e seus Cantores de Ébano nos deixam seja esta: que o canto em conjunto, quando nasce do coração de um povo, não precisa pedir licença para existir. Ele simplesmente se ergue, forte, vibrante, verdadeiro e deixa sua marca. Talvez seja hora de ouvirmos novamente essas vozes. Não para celebrá-las apenas como memória, mas para reconhecê-las como parte essencial de quem somos.

 

Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano - Felicidades - Luar do Sertão - Gravação Original.

 

Foto em preto e branco de homem pousando para foto

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Urutau - Nilo Amaro e os Cantores de Ébano.

 

Água do mar

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Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano - GRALHA AZUL

 

Pássaro em galho de árvore

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segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Lumumba: voz e memória de um Madrigal

   “Repetition é ensaio em francês.

E ensaiar é repetir, até que o som se torne verdade.”

Lumumba

 

Entre as muitas vozes que emergem dos registros e lembranças do Madrigal Renascentista, uma delas ressoa com força singular: Celiodivo Dias, o Lumumba. Em minha pesquisa, sua presença se torna mais que um depoimento, é uma bússola. Por meio de suas memórias, revivo a vibração intelectual e afetiva dos anos 1960, percebo a complexidade das relações dentro do coro e reencontro, com rara nitidez, a atmosfera da excursão aos Estados Unidos em 1965, quando o grupo leva a música brasileira a dezenas de cidades americanas. Ele é, em muitos aspectos, voz e consciência daquela geração coral.

Seu apelido evoca o líder congolês Patrice Lumumba e condensa, em uma só palavra, o vigor político e o carisma humano que o distinguem. “Houve um político congolês chamado Patrice Lumumba”, conta-me. “Conseguiu unir onze províncias tribais e formar a República do Congo. Foi derrubado por um golpe de Estado violento, supostamente inspirado pelos belgas. Seu corpo nunca foi encontrado. Um mártir. Como ele ocupou o noticiário da época, as pessoas começaram a chamar todo preto de Lumumba. E houve também um baixo dos Cantores de Ébano, o grupo do Nilo Amaro, muito bom, que ficou conhecido assim. O Isaac (Karabtchevsky) pensou nele quando me deu o apelido e me perguntou se eu achava ruim. Respondi que não, pelo contrário, por causa da admiração que tinha, e ainda tenho, pelo político congolês. Tenho até um pôster dele no meu escritório.”

Sua presença no coro, a partir de 1963, simboliza o encontro entre a efervescência intelectual da juventude mineira e a sofisticação artística de um conjunto que, naquele momento, se torna referência nacional. Sua história, entrelaçada à do coro, é também a história de uma época em que a arte e o pensamento se encontram nas salas de ensaio, nas faculdades e nos cafés de Belo Horizonte.

Filho de Eugênio, homem simples que tocava violão e se orgulhou ao ver o filho cantar no “melhor coral do Brasil”, Lumumba é um desses raros personagens que atravessam fronteiras: entre o popular e o erudito, entre o político e o artístico, entre o entusiasmo da juventude e a serenidade do ofício. Estudioso, curioso e inquieto, ele se aproximou do meio universitário por vias inesperadas. Em 1963, conheceu o economista Guido Rocha, ligado à POLOP (Política Operária), e participou de um curso informal sobre marxismo na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Ali discutia Hegel, Feuerbach e Marx, antes de ser convidado a escrever uma peça infantil para as Ligas Camponesas.

Durante essa convivência, um violão casual e uma canção de Caymmi revelaram sua voz grave e expressiva, descoberta que o levou, por intermédio de João Bosco Rocha, até Maria Lúcia Godoy e Isaac Karabtchevsky.

O teste foi improvisado durante um ensaio. Isaac pediu-lhe que repetisse um pequeno trecho que os baixos acabaram de cantar em “I Got Religion.” Lumumba executou-o de imediato, afinado, seguro e expressivo. O maestro o observou por alguns segundos e, batendo palmas, disse: “Pode sentar ali com os baixos e continuar o ensaio.” Assim, sem partitura e sem formalidade, ele foi admitido no Madrigal Renascentista. Um mês depois, já cantava no Grande Teatro Central de Juiz de Fora, com um pequeno solo em “Irene no Céu.”

O que o maestro avaliou naquele instante, Lumumba compreendeu melhor anos depois: “Num só momento ele checou afinação, timbre, conhecimento de língua estrangeira, dinâmica e bom gosto na emissão da voz. Foi um teste musical completo, e humano também.” Essa percepção revela a essência de seu talento: mais intuitivo que teórico, mais sensível que técnico, mais verdadeiro que metódico.

No Madrigal, ele viveu o auge de sua formação musical. Recorda o rigor dos ensaios (de segunda a sexta, das 19h às 22h, e aos sábados à tarde) e a exigência de Isaac, que repetia cada trecho até obter a exata gradação dinâmica imaginada. “Diz-se que o som de um coral está na cabeça do maestro, e no caso do Madrigal, é verdade”, comenta.

Em 1965, participou da tournée norte-americana que projetou o coro como Coro do Brasil em solo americano. O ônibus com essa inscrição percorreu 47 cidades de 25 estados, e as críticas publicadas em jornais como The Washington PostThe Raleigh TimesEl Dorado Daily News e St. Petersburg Times destacavam a perfeição técnica, o controle dinâmico e a emoção das apresentações. Lumumba descreve o entusiasmo dos públicos, auditórios de até três mil pessoas por noite, e a convivência leve entre os coristas, o maestro e o motorista Bill, “que fixava o acelerador para brincar nas retas asfaltadas.”

Mas também registra o choque político e humano: o impacto do apartheid no sul dos Estados Unidos. Os cartazes “For Colored People”, vistos em banheiros e restaurantes, o ferem profundamente. “Machucava a gente”, escreve. A experiência coincidia com a promulgação da Lei dos Direitos Civis, e ele associa o que via traçando um elo entre a causa negra americana e a desigualdade racial no Brasil. Sua consciência social e política confere ao grupo um olhar crítico raro entre artistas de classe média nos anos 1960.

De volta ao país, Lumumba seguiu cantando. Tornou-se baixo do Coral Lírico de Minas Gerais, onde permaneceu por dez anos como cantor contratado. Atuava em óperas, estudava árias de cor, auxiliava colegas com pronúncia de línguas estrangeiras e vivia plenamente o ofício de cantor. O fim desse ciclo, porém, é marcado por um episódio doloroso. Após uma década de dedicação, foi convocado a um teste para revalidação de vínculo. Contrariado e nervoso, declarou-se inseguro em teoria e solfejo, mas insistiram. Fez o teste e... foi reprovado.

“Tomei bomba”, conta, “e ali acabava, melancolicamente, o meu prazer de cantar ópera.”

Mas é justamente ao narrar esse episódio que Lumumba revela uma de suas ideias mais belas e mais críticas. Ele lembra, com ironia: “Repetition é ‘ensaio’ em francês. E o ensaio é feito de repetições. Repete-se até que se chegue perto da perfeição.” Essa observação, simples e profunda, toca o coração do fazer musical. Ser reprovado por uma deficiência de leitura, quando toda a arte do canto coral se constrói sobre a escuta, a memória e a capacidade de repetir com inteligência e emoção, é mais do que uma injustiça pessoal: é a imagem de uma tensão antiga entre o saber técnico e o saber sensível.

Lumumba nos lembra que muitos dos grandes cantores não são os que leem melhor, mas os que ouvem melhor, os que aprendem pela presença, pela entrega, pela experiência.

Aquele momento encerra simbolicamente sua trajetória como cantor, mas não como homem da música. O artista de voz grave e consciência lúcida sobrevive no narrador que revisita a própria história com humor, ironia e uma serenidade comovente. Sua memória é, ainda hoje, um testemunho essencial da vida coral mineira e das tensões que atravessam o campo artístico, entre dom e técnica, talento e burocracia, reconhecimento e esquecimento.

Lumumba é, enfim, o retrato de uma geração que faz da música não apenas um ofício, mas uma forma de pensar o mundo, e de repeti-lo, com beleza, até que se aproxime do essencial.













domingo, 16 de novembro de 2025

Elements 4. Água – o som que retorna ao silêncio

O último movimento de Elements, de Katerina Gimon, é Water, e, como na natureza, tudo se conclui na fluidez. Depois do fogo, que queima e transforma, vem a água, que acalma, reflete e conduz de volta ao início. Em Water, o coro parece dissolver-se. As vozes se entrelaçam em linhas ondulantes, ecoando umas nas outras, criando um fluxo contínuo que ora cresce, ora se recolhe, como maré, como respiração. Não há ruptura: apenas movimento.

A compositora descreve este trecho como uma corrente viva de sons que fluem em constante transformação, e é exatamente isso que se ouve, um tecido sonoro líquido, luminoso, que se molda ao instante. Na escuta, o tempo parece perder contorno. As vozes se tornam espelhos: uma reflete a outra, e todas refletem o todo. A música já não precisa subir nem descer, ela simplesmente permanece.

No Tarot, a Água corresponde ao naipe de Copas, o domínio dos sentimentos, da intuição e da entrega. É o elemento da empatia, do amor, da fusão. Na alquimia, representa a purificação pelo fluxo, o renascimento pela emoção. E na astrologia, vive em Câncer, Escorpião e Peixes, os signos da sensibilidade e do mergulho interior.

Na música coral, a Água é o instante em que o som se torna emoção. É o que vibra dentro, não apenas fora. É o eco que continua mesmo depois que a última nota termina. Em Water, o coro não apenas canta: ele respira junto, move-se junto, sente junto. É como se cada voz se tornasse gota, e juntas formassem o oceano. 

E assim o ciclo se completa, da Terra que sustenta, passamos pelo Ar que inspira, pelo Fogo que desperta, até chegar à Água que acolhe e reflete. Os quatro movimentos de Elements são, ao mesmo tempo, um retrato da natureza e um espelho do humano. Porque cantar é isso: transformar o mundo em som e, depois, deixar o som devolver o mundo a nós.

No fim, tudo retorna ao silêncio, mas é um silêncio cheio de luz, onde ainda ressoam, no fundo da alma, as vozes da Terra, do Ar, do Fogo e da Água.


Ao atravessar os quatro movimentos de Elements, de Katerina Gimon, compreendo que a música coral é também uma forma de alquimia. Cada ensaio é um rito de transformação: a Terra que se enraíza no corpo, o Ar que sustenta a voz, o Fogo que desperta o gesto e a Água que devolve tudo ao silêncio. E quando essas forças se unem, o coro deixa de ser apenas som: torna-se espelho da própria natureza, um corpo vivo onde o humano e o sagrado respiram juntos.

Cantar é, afinal, participar desse ciclo, erguer-se da Terra, elevar-se ao Ar, arder no Fogo e repousar na Água. E, no instante em que o som se desfaz, percebe-se que tudo retorna ao mesmo lugar: à escuta.

 

Elements IV: Water - Katerina Gimon (Frost Chamber Singers)

 



 


sábado, 15 de novembro de 2025

Elements 3. Fogo – o som que desperta a energia

O terceiro movimento de Elements, de Katerina Gimon, é Fire, e, como o próprio nome sugere, tudo nele é combustão. Depois da densidade da Terra e da leveza do Ar, chega o momento da centelha: o instante em que o som se acende.

Nessa peça, a compositora utiliza percussão vocal e corporal, palmas, estalos, sopros, respirações curtas, sílabas explosivas. A peça não se constrói sobre melodia, mas sobre ritmo e impulso, evocando a força que anima, o calor que transforma. A textura coral se fragmenta em múltiplos gestos que se entrelaçam, formando uma verdadeira dança sonora. É uma música que não se interpreta: se encarna. O coro torna-se chama viva , corpos que vibram, respirações que se inflamam, olhares que se acendem. Tudo acontece com urgência, como se o som estivesse prestes a se tornar luz.

No Tarot, o Fogo corresponde ao naipe de Paus, símbolo da vontade, da ação e do desejo. É o impulso criador, o princípio da transformação, a força que move o mundo. Na alquimia, ele é o agente da purificação, o que queima para revelar a essência. E na astrologia, o Fogo se manifesta em Áries, Leão e Sagitário, os signos da paixão, da coragem e da criação.

Em um coro, o Fogo é aquilo que dá vida à forma. É a vibração emocional que atravessa a técnica, a intensidade que faz o som sair do papel e se transformar em presença. É o momento em que o corpo canta tanto quanto a voz, e o gesto se torna expressão.

O Fire de Gimon é um lembrete de que a música também é energia, que cantar é um ato de combustão interior. E que, às vezes, é preciso arder para se escutar plenamente. O fogo do canto não destrói: transmuta. Ele ilumina o espaço interno de quem canta e de quem ouve. E, no fim, o que permanece não é o estalo nem o calor, é a luz.

 

🎧 Fire – Mädchenchor Hamburg

 



 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Elements 2. Ar – o som que respira

O segundo movimento de Elements, de Katerina Gimon, é Air, uma peça breve, de pouco mais de um minuto e meio, construída a partir de sílabas abertas, longos sons suspensos e respirações audíveis, como se o próprio coro fosse o vento que atravessa o mundo. 

Na concepção de Gimon, o movimento de “Air” representa o sopro que dá vida aos outros elementos, um instante de movimento e transição entre a densidade da Terra e a energia do Fogo. O som se desdobra em camadas leves e ascendentes: as vozes não se apoiam em ritmo, mas em fluxo. É música sem chão, feita de ar, de movimento, de respiro. Na escuta, o efeito é de flutuação. O coro parece pairar, sustentado por uma vibração invisível. Há uma clareza quase transparente nas linhas vocais, como se a partitura fosse escrita no próprio céu.

No Tarot, o Ar é o domínio das Espadas, símbolo do pensamento, da comunicação e da consciência. É o elemento da mente que observa, analisa e distingue, mas também o da palavra que conecta e nomeia. Na alquimia, o Ar é o mensageiro entre mundos, o sopro divino que liga o espiritual ao terreno. E na astrologia, ele se manifesta em Gêmeos, Libra e Aquário: os signos da inteligência, da harmonia e da expansão mental.

No canto coral, o Ar é o próprio instrumento invisível da arte. Sem ele, não há som; sem respiração, não há vida na música. O Air de Gimon nos lembra que cantar é, antes de tudo, respirar juntos, sentir o mesmo pulso interno, o mesmo instante de pausa e renovação. 

O movimento é tão curto quanto essencial. Depois da solidez da Terra, ele nos devolve o espaço e a leveza, o intervalo necessário para que o som se mova. E nesse instante, entre uma nota e outra, o que se ouve é o coração do coro respirando.

No Tarot, o Ar nos ensina a clareza. Na música, ele nos ensina a escuta. E ambos dizem a mesma coisa: é preciso abrir espaço dentro de si para que algo possa soar.

 

🎧 Elements II: Air - Katerina Gimon (Frost Chamber Singers)

 



 

O som em meio ao caos (por Weberson Almeida)

Maestros são formados para parecer indestrutíveis: inerrantes, infalíveis, acima de qualquer problema. Desde cedo, aprendemos a ter sempre u...